Não me refiro, entretanto, a méritos propriamente narrativos, algo que a econômica adaptação de Robert Bresson dispõe, mas não o bastante para desbancar o esforço graúdo do semelhante A Paixão de Joana D’Arc (1928). O mérito da fiel transcrição do julgamento e condenação da mártir francesa está no minimalismo imposto por Bresson na mise-en-scène enxuta e questionamentos diretos, recitados friamente e sem a consternação e histerismo da versão de Luc Besson de 1999 (a da Milla Jovovich no papel principal, uma escalação que não precisa de comentários adicionais). Determinado a investigar exclusivamente o processo transcorrido em Rouen ao longo de 5 meses, o roteiro abstém-se de questionar as visões de Joana e de se alongar na decisiva e impaciente participação inglesa nos bastidores da decisão.
Ao invés disto, o roteiro nos apresenta a jovem Joana, intransigente e inquebrantável diante dos acusadores, porém sensivelmente enfraquecida diante da morte certa (algo que Florence Delay ressalta com lágrimas nos olhos e uma atuação competente, embora jamais excepcional). Apresentada pela mãe na declaração inaugural ao som de um ribombar de tambores, o processo transcorre com perguntas do quilate de “Por que a voz de Deus não apareceu para o rei?” ou “Você já viu fadas?” e acusações de que portava espada e não um estandarte ao adentrar numa igreja, do uso constante de roupas masculinas, uma abominação perante Deus, e a prática de blasfêmias e bruxarias (curas, ressurreição e bençãos, vejam só que hipocrisia!). Isto revela o reducionismo da guerra de franceses e ingleses a uma questão meramente teológica, onde se encerra detrás dos panos a clara intenção de destruir um mito através da morte na fogueira, abalando a moral dos que cegamente seguiam os ideais defendidos por sua heroína.
Vigiada incessantemente por guardas que espiam por entre as brechas da sua minúscula cela e na troca de olhares compassivos com um bondoso padre que visava a sua salvação e não condenação, Joana D’Arc suscita uma dúvida imensa no espectador: estaria ela manipulando os bispos acusadores revelando a sua posição coerente com os dogmas da igreja acerca do martírio, da vontade de Deus e do reino dos céus, ou ela realmente acreditava nas suas visões divinas e na mensagem que carregava? Seria a sua intenção de se submeter ao Conselho Sagrado e ao julgamento do Papa apenas uma estratégia de salvar a sua vida? O que levou Joana a assinar a confissão apenas para rechaçá-la posteriormente? Sem a presença do arcanjo Miguel – frequente noutras adaptações – estas indagações não têm respostas tão explícitas, exceto se o espectador limitar a sua imaginação cegamente à religião.
Assim, mais do que reproduzir documentalmente o processo de Joana D’Arc, Robert Bresson questiona a lenda negando a chance de testemunhar as suas ações e portanto permitindo ao espectador compartilhar da mesma posição daqueles bispos juízes (com o benefício da imparcialidade que eles não tiveram). Expondo o lado frágil da guerreira que, afinal de contas, era apenas uma garota de olhos marejados e que pouco conhecia sobre a vida, O Processo de Joana d’Arc ainda se dá ao luxo de encerrar com a simbólica reprodução de uma cruz coberta de chamas, e este poderia ser eternamente o símbolo negro da igreja durante a vigência do tribunal do Santo Ofício da inquisição.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
3 comentários em “O Processo de Joana D’Arc”
Depois obra-prima de Dreyer, é a melhor versão da história bizarra de Joana D'Arc.
O Falcão Maltês
Concordo. A versão de Dreyer é fabulosa mesmo.
Muito bom , adorei! Me ajudou muito em um trabalho que um professor passou. Obrigado!