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Another End

2.5/5

Aprender a encarar a perda de um ente querido ou um amigo é um drama tão humano que até lhe demos um nome. É natural, portanto, que a arte discuta o luto, diretamente e através de alegorias, e que a ficção-científica proponha ideias, tecnologias e mecanismos para tal processo. Pegue Black Mirror, especificamente o episódio Be Right Back da 2ª temporada, e recorde de Solaris, de Andrei Tarkovski, obras de ficção-científica em que a representação da pessoa ausente é parte de uma materialização, ou manifestação, que abdica da alma em favor da aparência. Another End parte da mesma premissa, mas aposta em outro processo: a aparência é descartada em favor da alma, simbolizada nas memórias conservadas por um profissional denominado host (ou hóspede), receptor do implante das memórias da pessoa ausente.

No caso do roteiro, a pessoa ausente é Zoe, que faleceu em um acidente de carro pelo qual se culpa Sal (Gael Garcia Bernal). Atenta ao sofrimento do irmão, que tenta tirar sua própria vida ingerindo medicamentos, Ebe (Bérénice Bejo) recomenda uma terapia inovadora criada pela empresa em que trabalha. O implante das memórias de Zoe no host vivido por Renate Reinsve, que comercializa uma parte de sua vida para que Sal reconecte-se com a esposa. É óbvio que nada de bom pode sair daí, mas detalhes adicionais são spoiler.

Um dos aspectos interessantes da ficção-científica está nas camadas de representação que estão envolvidas: Ava empresta o corpo para ser governado pelas memórias de Zoe, igual a Renate Reinsve empresta o corpo para que a personagem Ava se manifeste. Não para por aí, pois a ocupação primária de Ava envolve uma representação específica, com objetivo de confortar o outro, não muito distante do que realiza em seu segundo emprego. A encenação não aprofunda no comparativo, embora esteja presente, especialmente no instante em que se aproximam diante do cinema (na realidade, um projeto caseiro).

É uma ficção-científica sóbria, cujo futurismo está apresentado no conceito, não na imagem. A fotografia de Fabrizio La Palombara com razão retira toda a vida e expressividade das cores e formas, em favor de contornos mais coerentes com os elementos dramáticos. Além do mais, a existência de museus, em que estão emoldurados, como pinturas, o produto do olhar armazenado na memória obriga-nos a refletir acerca da desvalorização e vulgarização das imagens e vídeos na era das redes sociais. A aposição de uma moldura não dá, ao que eu e você registramos nos stories, o condão de arte, embora artistas possam ser revelados a partir das mesmas redes sociais. Isso porque a memória não é só a representação visual, é também a representação sensível, que, subtraída, leva consigo o valor do que significa, por exemplo, encarar os pés. Esse vídeo não tem valor artístico ou intrínseco, só quando é associado ao sentimento de introspecção de Sal.

Ironicamente, quando Ava hospeda as memórias de Zoe, a representação visual é posta em  segundo plano em favor da representação sensível, materializada em forma de memórias. E é com este tipo de contradição que o protagonista deve lidar, tratada, por Piero Messina, a partir de uma linguagem que flerta mutuamente com o melodrama e o thriller hitchcockiano – por que não -, com o stalking misturado ao de recriar não exatamente a imagem da mulher mas o que esta representa.

São tantas alternativas que é até decepcionante que Another End contente-se somente em revirar a trama para satisfazer a expectativa por surpresas e reviravoltas (não obstante, uma fragilidade comum a muitas ficções-científicas). Nem tanto pelo plot twist propriamente dito, pois sinto que a direção não tentou escondê-lo tanto assim, chamando a atenção do público a momentos chave, mas em razão da falta de verossimilhança dos eventos antecedentes e subsequentes (basta questionar, sem entrar em detalhes, sobre a quantidade de polaroides e o que isto sugere a certa personagem).

Gael interpreta uma figura obsessiva e transeunte, que caminha pela noite igual o enlutado caminha pelas sombras da angústia e da dor. Renate sutilmente sublinha a atuação a fim de diferenciar Ava de Zoe, dando à primeira uma frieza que a segunda não possui. E Berenice é capaz de conferir profundidade dramática à Ebe, ainda que não tenha oportunidade de ser mais do que um pivô para a narrativa. Por outro lado, é uma pena que a narrativa despreze o psiquiatra e chefe da clínica interpretado por Pal Iron – cuja voz serena e compassada é adequada à função que desempenha – e a mãe vivida por Olivia Williams, que encena à sua maneira a oportunidade perdida por Another End.

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