Pistoleiros do Entardecer (Ride the High Country, Estados Unidos, 1962). Direção: Sam Peckinpah. Roteiro: N. B. Stone Jr. Elenco: Randolph Scott, Joel McCrea, Mariette Hartley, Ron Starr, Edgar Buchanan, R. G. Armstrong, James Drury, L. Q. Jones, John Anderson, John Davis Chandler e Warren Oates. Duração: 94 minutos.
No mesmo ano em que O Homem que Matou o Facínora desvirtuou diversas premissas do faroeste clássico, não sobrou muito terreno para o diretor Sam Peckinpah desbravar no velho oeste sem parecer datado. Em Pistoleiros do Entardecer, o cineasta abraça um tema que viria a permear a sua filmografia: o caubói relutante em aceitar a própria idade e aposentar as esporas, vide Meu Ódio sera sua Herança e Pat Garrett e Billy the Kid. Aqui, o seu protagonista é Steve Judd (Joel McCrea), ex-xerife contratado para coletar ouro de uma mina nas proximidades que sente na pele o preconceito por ser mais velho (“Eu esperava um homem mais novo“, afirma o banqueiro que paga por seus serviços). Ciente de que jovens têm dificuldade de empregar homens mais experientes, uma verdade infelizmente perene, o desconforto de Steve é evidente quando exige privacidade para ler os termos contratados (ele não quer ser visto de óculos).
Para auxiliá-lo na empreitada, Steve convida o amigo Gil Westrum (Randolph Scott no seu último papel) acompanhado do impulsivo Heck Longtree (Ron Starr); estes dois têm planos pouco lisonjeiros de rescindir o contrato e roubar o ouro durante a viagem. Mas, tudo muda depois de passarem uma noite na fazenda do cristão fundamentalista Joshua (R. G. Armstrong), pai da bela Elsa (Mariette Hartley; o cabelo aparado curto e os vestidos sem cor e atrativos denunciam a opressão sexual imposta à jovem), que foge com o bando para cumprir a promessa de se casar com o mineiro Billy (James Drury). Muitos elementos clichês vêm à tona, como a dinâmica mestre e aprendiz, o casal que se odeia, mas se ama (refiro-me a Heck e Elsa) ou o caubói impelido a seguir suas convicções morais embora estas sejam contrárias ao seu trabalho.
Apesar de não negar ser um faroeste convencional, a segunda metade da narrativa traz a marca registrada de Sam Peckinpah: a violência crua e desgastante. Bastante parecido com um dos clássicos do diretor, Sob o Domínio do Medo, Elsa descobre que Billy e seus quatro irmãos são monstros, dispostos a estuprá-la: seu noivo acelera a celebração do casamento impaciente pela noite de núpcias; os demais parecem ansiar por uma pequena brecha que deixe a moça desguardada. Tudo bem orquestrado por Peckinpah, apostando na agonia e tensão de desconfortáveis closes de bêbados sorrindo, incômodos planos inclinados e a óbvia pureza do figurino branco de noiva contrastando com a imundice do salão onde acontece a comemoração.
Durante o inevitável clímax típico do gênero, fica fácil imaginar de que lado ficarão Gil e Heck, apaixonado por Elsa, ou os sacrifícios que o velho Steve Judd terá que realizar para manter a sua palavra, o seu principal bem, e retornar justificado à sua casa. Mesmo inequivocamente comum, Pistoleiros do Entardecer mantém-se fiel às boas convenções do faroeste, além de contar com atuações competentes e uma narrativa carregada de melancolia e saudosismo.
Ivan (devastadora atuação do jovem Nikolay Burlyaev) é um garoto de 12 anos cuja família foi assassinada pelo exército nazista durante a invasão da União Soviética na segunda guerra mundial. Atormentado por pesadelos, onde a sua infância feliz sucumbe prematuramente à perda dos entes queridos, o jovem é movido por um cego desejo de vingança que o leva a se tornar espião. Isto também explica a sua atitude arrogante, temperamental e impertinente no trato com o capitão Kholin (Valentin Zubkov) e, principalmente, o porquê de recusar o convite para se alistar na escola militar (comparando-na, inclusive, a um orfanato).
Maior do que os demais personagens no quadro, efeito que Tarkovskyi obtém ao manter Ivan no primeiro plano e, boa parte das vezes, visto de baixo para cima, superando as limitações de sua diminuta estatura, o jovem evoca o patriotismo soviético e recusa ser mero espectador da guerra enquanto seus irmãos morrem nas trincheiras. Repudiando a covardia e inutilidade, Ivan mal desvia o olhar dos cadáveres dependurados no galho de uma árvore, denunciando sua emancipação precoce e a impossibilidade de sustentar uma ilusão em face dos trágicos espólios da guerra na sua vida.
Estabelecendo uma narrativa fragmentada, mas não incompreensível, Tarkovskyi beneficia-se da montagem econômica de Lyudmila Feiginova que salta entre eventos desconexos para elaborar um panorama além da figura central de Ivan: observe a enfermeira Masha que, desfrutando uma rara liberdade na floresta, entrega-se a um beijo apaixonado emoldurado em belíssimo contra-plongée. Este plano, aliás, vem estabelecer uma rima visual com a sequência onírica em que Ivan, impotente, testemunha a morte da mãe de dentro de um fundo poço. Por falar em família, a preocupação dos soldados em relação ao destino de Ivan comove e frustra nas tentativas em vão de emular uma espécie de figura paterna que é prontamente descartada pelo jovem.
Denotando brevemente a alegria perdida no sonho de estar flutuando sobre uma floresta ou brincando com a irmã nas areias de uma idílica praia, Andrey Tarkovskyi elabora um devastador retrato da guerra através da tragédia pessoal de seu pequeno e imperativo soldado e uma infância morta enterrada no mais fundo subconsciente.
Esta publicação integra o especial do Cinema com Crítica que celebra o aniversário de clássicos que completaram 50 anos de idade. Na próxima edição, Lolita de Stanley Kubrick.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
1 comentário em “Pistoleiros do Entardecer | A Infância de Ivan”
Ainda não vi PISTOLEIROS DO ENTARDECER, mas A INFÂNCIA DE IVAN é uma maravilha, como toda a obra de Tarkovsky.
O Falcão Maltês