Escrito a oito mãos, o roteiro apresenta a espirituosa e jovial princesa Merida, a exímia arqueira de cachos ruivos e rebeldes filha do rei Fergus e da amável e controladora Elinor, cujo maior sonho é ver a filha se tornar uma dama. Para isso, ela leciona diariamente aulas de bons modos e etiqueta, sempre acompanhadas do mantra de que “uma princesa nunca deve…“, na esperança de que Merida venha a abandonar as armas e finalmente desposar um príncipe. Certo dia, depois de contrariar a mãe e fugir da cerimônia de escolha do seu noivo, a jovem encontra uma bruxa na floresta que lhe prepara uma poção mágica capaz de alterar o seu destino; o seu uso, porém, acaba por ameaçar a paz entre os clãs, obrigando mãe e filha a se unir em uma jornada para desfazer o mal provocado.
Reencenando elementos batidos de filmes de princesa, a narrativa apresenta a sua bruxa nariguda e de queixo pontiagudo (uma personagem descartável que some desavisadamente) e uma breve estada enclausurada na torre do castelo. E, embora se mantenha inabalável no foco feminista evitando a presença do príncipe encantado para salvar o dia (os três primogênitos dos clãs não têm o que fazer, assim como o rei), Valente não consegue fugir do lugar-comum. A narrativa não comove (como Up! – Altas Aventuras), não empolga (como Os Incríveis) e não provoca aflição pela segurança dos personagens (como Toy Story 3), tudo é muito ordinário e modesto, dois adjetivos que até então não imaginaria estarem associados a Pixar. Nem mesmo a habilidade de Merida no arco e flecha serve alguma propósito finalístico na narrativa.
Muito disso se deve à desajeitada estrutura da narrativa que se estende demasiadamente no longuíssimo primeiro ato (o trailer com fermento), em detrimento do desenvolvimento harmônico da ação e do clímax. Se Merida colocou o destino do reino em risco, isto não é sentido e se resume a discussões e ameaças na sala de jantar do castelo; por sua vez, a lenda a respeito do príncipe egoísta não ressoa no restante da narrativa e mal tem força de promover uma analogia com a história da princesa. Além disso, o diretor Mark Andrews desenvolve pobremente seus personagens secundários: Fergus é um rei parcialmente conciliador e bondoso, que acha graça das estripulias da filha, e parcialmente obcecado em capturar o urso Mor’du, a gigantesca fera que amputou a sua perna; este, embora conceitualmente ameaçador, com cicatrizes visíveis e flechas encrustadas na espessa pele, é paradoxalmente o antagonista mais insignificante da história da Pixar, tratando-se de uma presença efêmera e descartável.
Contudo, o maior problema de Valente está no inadequado desenvolvimento do relacionamento mãe e filha: visivelmente carinhosa, Elinor é uma rainha que deseja unicamente o bem da filha e, a seu ver, isto passa por uma visão tradicionalista e retrógrada do que é ser uma princesa; enquanto isso, Merida é teimosa, valoriza a sua independência e buscar seguir seu próprio destino e não o que sua mãe anseia, como toda boa adolescente. Elas se amam, disto não há dúvida, mas não falam a mesma língua (vide a eficiente montagem aproximando as duas enquanto conversavam sozinhas) e acabarão se magoando; é um retrato contemporâneo em uma embalagem de época e, nas circunstâncias postas pela narrativa, a reconciliação vem fácil demais. O conflito dramático central não tem tempo de amadurecer, esgotando-se rapidamente, e Merida sequer pode remendar a sua atitude impensada e egoísta (no caso, é a mãe quem se expõe e se sacrifica). Mais do que moralmente desequilibrada, a narrativa ainda extrapola no óbvio, dando saudades do tempo em que a Pixar não precisaria do insert da tapeçaria para recordar o espectador de um aspecto importante.
Mesmo assim, o empenho técnico do estúdio quase cega em face dos tropeços narrativos: a inflexão facial de Merida durante o pedido de desculpas transmite uma tristeza assustadoramente mais real do que muitas atrizes de carne-e-osso conseguiriam evocar; a atenção aos detalhes (a mecha grisalha de Elinor e seus discretos fios brancos) e a textura dos objetos (as obras de carpintaria da bruxa) também impressionam. E se uma imponente queda d’água ou a elasticidade de uma flecha disparada em câmera lenta renderiam à equipe de animação todos os prêmios do ano, o que dizer dos desgrenhados cabelos da princesa cujos fios parecem independentes uns dos outros? Por outro lado, esta é a primeira vez que recordo da Pixar pegando emprestado conceitos visuais de outros filmes: há muito de Stoick de Como Treinar o seu Dragão em Fergus, Angus, o cavalo de Merida, soa igual ao Max de Enrolados, e o rei ancião da lenda lembra Saruman de Senhor dos Anéis (embora esteja convicto de esta seja mera coincidência).
Engraçadinho (o humor exige muitos alívios cômicos, mas funciona) e divertido, Valente nunca atinge o patamar de excelência e ousadia dos demais filmes da Pixar. Sinal, talvez, de que devamos encarar a triste realidade de que o estúdio tem se nivelado por baixo e deixado de ser aquele que me conquistara com a trilogia Toy Story, Wall-E ou Ratatouille. Espero, como amante do cinema, que Universidade Monstros faça-me morder a língua.
Observação: após os créditos finais há uma divertida cena adicional.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
4 comentários em “Valente”
É, a pegada é mesmo voltada ao jeito Disney de se contar histórias. Impossível negar. Porém, saí satisfeito da sessão por saber que, independente de um ou outro projeto que não tenha recebido o apoio esperado, é uma empresa que ainda tem crédito para merecer nossa torcida.
Me diverti bastante com Valente e fiquei deslumbrado com seus aspectos técnicos, que, vale dizer, são os únicos fatores voltados também ao público adulto. No restante do tempo, são as crianças que se divertem de verdade (o que não deixa de ser ótimo).
Belo texto, cara.
Realmente não me atraiu.
O Falcão Maltês
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Eu tive maus presságios desde que a Pixar investiu em uma continuação no ano passado (continuação de um filme que eu nem gostei tanto), isso já apontava para uma mudança de rumos que pode ser notada neste filme, de acordo com o que você disse (eu ainda não o vi). Temo que o estúdio continue a investir em produção que tendem a ter maior sucesso de bilheteria e acabar permitindo que suas produções percam qualidade artística…
http://sublimeirrealidade.blogspot.com.br/2012/07/o-pequeno-principe.html