Durante a década de 20 e 30 do século passado, os Estados Unidos viveram sob o rigoroso controle de uma lei que proibia a comercialização e a produção de bebidas alcoólicas. Mas isso não impediu que muitos bandidos célebres, como Al Capone, montassem cartéis de distribuição ilegal e lucrassem rios de dinheiro com a proibição, enchendo também os bolsos dos corruptos do governo que faziam vista grossa. Foi contra a prática de molhar a mão dos homens da lei que os três irmãos Bondurant, contrabandistas na cidade de Franklin, se colocaram logo depois da chegada do agente especial Charlie Rakes, resultando nos conflitos e banho de sangue retratados em Os Infratores, filme baseado no livro escrito por Mark Bondurant, neto de um dos irmãos.
Mais uma história de amadurecimento de um jovem covarde e irresponsável durante um período em que o medo e a negligência bastariam para enterrá-lo em uma cova rasa, o roteiro de Nick Cave apresenta o irmão caçula Jack Bondurant (Shia Labeouf) como alguém de poucos recursos à sombra dos irmãos Howard (Jason Clarke) e Forrest (Tom Hardy), tido como indestrutível pelo povo da região. Buscando provar o seu valor e se tornar um novo Floyd Banner (Gary Oldman), bandido que idolatrava, Jack não nasceu para o crime, faltando-lhe a coragem necessária para ir às últimas consequências quando a situação exigir. A escolha de Shia Labeouf, portanto, é um dos grandes acertos da narrativa e o seu rosto infantil, a fala mansa e a incapacidade de ponderar as consequências de suas ações demarcam o extenso caminho que deverá percorrer antes de se tornar um homem embrutecido como seu irmão Forrest, vivido por Tom Hardy, aparentemente limitado aos papéis de brutamontes de bom coração.
Nesse sentido, a violência parece a única maneira de converter Jack em um autêntico Bondurant, uma vez que ela está presente no sangue da família desde a infância matando porcos, e o diretor John Hillcoat acertadamente não ameniza ao retratar os estragos provocados por um golpe de soco inglês, a sanguinária brutalidade de uma tocaia e o covarde espancamento de Jack visto com relativo sadismo a cada golpe desferido no indefeso rapaz. Além de revelar o desconforto e relutância sentidos pelo irmão caçula, a violência desmedida também imprime insegurança na época em que a força bruta era uma arma mais eficiente do que as palavras escritas nas leis, e as cruéis ações de Charlie Rakes (Guy Pearce) comprovam a indispensabilidade do sangue para introduzir um novo artigo.
Entretanto, apesar de capturar a atenção do espectador com o uso adequado da violência e o desenvolvimento exemplar da premissa, a narrativa de John Hillcoat sofre uma grande queda na qualidade ao longo do segundo ato, sobretudo na insistência em subtramas românticas descartáveis, com direito à popular (para não dizer clichê) cena do curativo e a um personagem durão, mas tímido emocionalmente. E além de comprometer o ritmo da narrativa e afastar o foco do que realmente interessa, ou seja, a queda de braço entre os irmãos Bondurant e Charlie Rakes, a gordura da narrativa ainda prejudica a transformação de Jack em um gângster (ao menos no modo de se vestir) e a expansão dos negócios ilegais praticados na região, vistos de forma afobada em uma desajeitada elipse musical, narrada por Jack e destoante do tom cru do restante.
Reconstruindo com esmero o estado da Virgínia na década de 30, a direção de arte evoca a pobreza da região nos bares que parecem cair aos pedaços, nos velho automóveis, mas sobretudo na comparação com a pompa do figurino de homens de fora, como Charlie Rakes e Floyd Banner (e dessa forma, também os Jack depois da segunda metade). Decadência também registrada na fotografia envelhecida, desbotada e suja de Benoît Delhomme, cuja cor de maior destaque não poderia ser outra senão o vermelho do sangue derramado nas ruas por Charlie.
Abraçando a caricatura sem, contudo, parecer menos perigoso e sádico, Guy Pearce bebe da mesma fonte que criou vilões como o Coringa e faz do agente Charlie Rakes um sujeito repulsivo e cuja caracterização extravagante (o cabelo encerado repartido no meio, as sobrancelhas raspadas e a risada estridente e incômoda) não esconde a narcisística missão de impor a lei da maneira que melhor convir e impiedosamente caçar os irmãos Bondurant. Por outro lado, boa parte do grande elenco é desnecessária, e se Gary Oldman não explica ao que veio, servindo só somente de apêndice para a crítica à cultura de celebridades – lembrem-se que os grandes bandidos eram tidos como tais ao estampar capas de jornal -, Mia Wasikowska (novamente apagada) e Jessica Chastain (novamente linda) funcionam unicamente como interesse amoroso.
Coerente com a natureza do protagonista ao retratar a sua ação mais contundente na escuridão, Os Infratores é um bom retrato de um período histórico norte-americano, mas que precisaria cortar muitos excessos para atingir filmes assemelhados como Era uma vez na América e Os Intocáveis.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
2 comentários em “Crítica | Os Infratores”
Ótima resenha, Márcio. Abraços.
O Falcão Maltês
Muito boa crítica, parabéns