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O Milagre

4/5

O Milagre

2022

108 minutos

4/5

Diretor: Sebastián Lelio

Sebástian Lelio propõe um jogo metalinguístico em novo suspense lançado pela Netflix.

Por Thiago Beranger.

“No hay banda. Mesmo assim se escuta a música”. David Lynch construiu a partir dessa ideia um dos grandes momentos da história do cinema, a sequência do “Club Silencio” em “Cidade dos Sonhos” (2001). O que Lynch sinaliza é a essência farsesca do cinema. O cinema é uma grande mentira, uma ilusão que nos faz ver e crer por algumas horas em algo construído artificialmente. Sebástian Lelio abre seu “O Milagre” nos sinalizando, de forma bem mais direta, a mesma coisa. Ao iniciar mostrando o que estaria nos bastidores juntamente com uma narração “em off” expressando textualmente que aquelas imagens são um filme, o diretor já nos dá várias dicas do que estaria por vir.

Essa ideia de quebra da quarta parede é pontuada em momentos do longa, sempre através de uma personagem específica (vivida por Kitty O’Donnell), mas não se torna um recurso constante. Em sua maior parte, o filme funciona da maneira tradicional, construindo eficientemente a sua farsa. Essa escolha metalinguística funciona em diversos níveis, porque a trama que se desenrola também propõe o mesmo jogo. A história do filme gira em torno de uma dúvida: Anna (Kíla Lord Cassidy) está ou não mentindo acerca da sua capacidade de sobreviver jejuando? E aí, nessa lógica, frases como “ela é uma atriz”, ditas em referência à personagem, ganham um sentido completamente novo. Esse diálogo entre duas dimensões narrativas é o que há de melhor aqui.

A metalinguagem aparece como elemento importante do longa.

De certa maneira, explorar essa ideia poderia funcionar como um grande spoiler do que estaria por vir desde o início. Mas a ideia vem junto com um convite feito pela narradora: “acredite nessa história”. Em qual história? Na contada pela menina? Não… Lelio é um cineasta competente e através desse experimento prova que o cinema tem a força de nos fazer acreditar no impossível. O bom cinema sabe exatamente o que fazer para manipular o seu espectador de tal forma que psicologicamente se confunda o que é real e o que não é. 

A protagonista Elizabeth (Florence Pugh) nos acompanha nesse processo. A personagem sai de um ceticismo científico até a dúvida. Esse movimento ocorre por conta do seu histórico de vida, que a faz se afeiçoar por Anna de tal forma que perde a verdadeira perspectiva dos fatos. Por algum tempo Lib, como é apelidada, se vê também confusa. Aí mora um dos grandes artifícios usados pelo diretor para conseguir nos fazer entrar em seu jogo. O processo de empatia estabelecido entre espectador/protagonista faz com que Lib nos guie em sua jornada. Assim como ela, nos afeiçoamos a Anna. Assim como ela, queremos tanto acreditar em sua farsa que por alguns momentos deixamos de lado a racionalidade e mergulhamos no campo da fé.

Dentro, fora. Imersão e descrença. O filme brinca de nos iludir, só pra depois dar uma piscadela nos lembrando de sua artificialidade. É pretensão ou coragem desafiar o espectador dessa maneira?

O trio de protagonistas precisa interpretar novos papéis para escapar da farsa.

Mas aí, “O Milagre” dá outra guinada também surpreendente. A grande dúvida do longa é resolvida cedo demais. A farsa criada pela menina Anna e por sua família é desmascarada por Elizabeth e Willian (Tom Burke) em um ponto do filme onde as coisas ainda não parecem estar perto da conclusão. Percebe-se aí, que Lelio não busca com seu trabalho simplesmente estabelecer um jogo entre crença e descrença. Ele vai além, nos mostrando que não se trata disso. Mesmo com a revelação a trama não se resolve. Anna precisa acreditar em sua farsa por conta da alienação e da violência promovida por seus próprios familiares. A comunidade que a cerca, mesmo diante dos fatos, segue escolhendo a farsa por interesses políticos e religiosos. Não se trata do que é verdade e o que não é.

O longa trabalha em sua raiz uma questão que não poderia ser mais atual. A verdade nem sempre é conveniente, e por isso acaba sendo relativizada. Não faltam exemplos da vida real para ilustrar essa ideia. As pessoas acreditam no que querem acreditar e forjam condições materiais para que suas mentiras (ou verdades particulares) sobrevivam ao jugo da racionalidade. Até onde isso fica no campo da fé? Em que momento o limite é ultrapassado e essa fé se converte em algo perigoso? As respostas não são dadas, no entanto há uma conclusão que não deixa de ser divertida. Só através de uma outra farsa Anna consegue escapar de seu triste destino, dessa vez tendo Elizabeth e Willian como cúmplices. É só interpretando papéis que os três personagens partem para uma outra vida, em um outro lugar, onde viverão de tal forma a mentira, que ela pode acabar se tornando uma verdade.

Márcio Sallem também escreveu sobre o filme e o seu texto pode ser lido aqui.

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