Nem mesmo a ingenuidade infantil está protegida de ser corrompida pela monstruosidade retratada no cinema coreano. Mas diferente dos longas que recorrem à violência como a maneira de retratar o animal dentro do ser humano, Barbie não derrama uma gota de sangue e a sua crueldade é maquiada sob supostas boas intenções e doces palavras. Não que a chegada de Steve e sua filha Barbie dos Estados Unidos à Coréia para adotar a jovem Soon-young tenha resquícios de afetividade parecendo muito mais uma transação comercial com Mang-tak, seu tio e responsável por manter a casa e a irmã caçula Soon-ja, uma vez que o seu irmã Mang-woo sofre de deficiência mental.
Nessa família desfuncional, a vaidosa Soon-ja tem o sonho de ser uma autêntica Barbie culminando no sexualismo precoce ilustrado de maneira sutil pela direção de Sang-woo Lee. Enquanto isso, Soon-young vende miçangas para ajudar nas finanças da casa, pensa antes na família com altruísmo e carinho e poderia ser a única jovem incorruptível da narrativa se não desse uma de esperta durante uma venda. A direção também não perde a chance de revelar o desapego de Soon-young, vista isolada dos demais colegas durante a aula fabricando bijuterias. Esse maniqueísmo prejudica todos os outros personagens e Steve é um clichê alienado e preconceituoso enquanto Mang-tak um tio absurdamente insensível cujas demonstrações pontuais de preocupação são minadas completamente ao vê-lo dentro de um carro esportivo.
Repleto de excessos insistentes, Sang-woo repisa a doença de Soon-ja uma meia dúzia de vezes, obriga Steve a dizer que pessoas retardadas não deveriam ter filhos e faz Mang-tak humilhar e ofender os familiares. A mão-pesadíssima consideravelmente reduz a dureza e o impacto do terceiro ato, mas eu seria um insensível se não fosse afetado pela maneira delicada com que o último ato é conduzido, retirando as camadas de maldade aos poucos e usando a incompreensão como maneira de repisar a ingenuidade. Assim, a aparentemente inocente imagem de uma garota agitando a bandeira dos Estados Unidos acaba sendo bem mais angustiante do que as tentativas do diretor de produzir emoções fáceis.
Novamente, os coreanos conseguem chocar mesmo diante da perfeição de uma Barbie. Mesmo assim, o resultado é só moderadamente bom.
06) Gente fina (Kurteist fólk, Islândia, 2011) – Direção: Olaf de Fleur Johannesson.
Larus é um trambiqueiro que foge da cidade para uma comunidade rural com um projeto de reabrir o matadouro da cidade e salvar a economia local. Querendo honrar a memória do pai em coma, enfrentando a dureza do divórcio em uma cena particularmente boba e a mãe alcoólatra, Larus é manipulado pelo prefeito Markell em uma história de corrupção que só poderia acontecer em uma cidadezinha do interior. A sinopse parece divertida, mas essa comédia de humor negro não é particularmente envolvente e tem personagens em demasia que desviam o foco e atrapalham a aceitar que aquela pequena comunidade tenha tanta gente interesseira.
Para piorar, a narrativa é muito mal resolvida e os personagens unidimensionais demais: Margret é uma garota apaixonada por quem quer que tenha poder, Elizabeth carrega uma garrafinha de uísque no bolso antes de se internar em uma clínica de desintoxicação, Hrafnkell é um cara perfeitinho que tem a namorada mais linda da cidade e acaba escolhido para chefiar a transição de poder da cidade. Já Larus não consegue manter uma postura decidida revelando-se um personagem sem graça e careta cujos objetivos não permanecem muito claro. Ele quer respeitar a memória do pai ou quer entrar no jogo sujo do poder?
Ainda assim, Gente Fina é ocasionalmente pitoresco e você dificilmente encontrará em outra narrativa a sequência divertidinha em que um Senador foge desesperadamente de um candidato que tenta linchá-lo. Ou mesmo o inspirado diálogo no qual o prefeito afirma estar realizando um “investimento na cidade” e a única resposta de um empresário é: “você só pensa na cidade”. Mas tudo isso é muito para justificar esse projeto sem graça.
07) No (Idem, Chile/França/Estados Unidos, 2012) – Direção: Pablo Larraín.
Antes da sessão de No, filme escolhido pelo Chile para representar o país no Oscar, o produtor Daniel Marc Dreifuss anunciou a grande exigência do diretor Pablo Larraín: ele precisava de uma jurássica câmera U-matic para registrar os 27 dias de campanha eleitoral antes do plebiscito chileno de 1988 que decidiria pela manutenção do general Augusto Pinochet no poder ou a transição para um regime democrático. Seu pedido feito ao produtor não poderia ser mais oportuno! Alcançando um elevado nível de verossimilhança na fluidez da excepcional montagem de Andrea Chignoli e Catalina Marín Duarte, mal se consegue distinguir onde começam as imagens reais de arquivo e as filmadas em estúdio, e a fotografia de Sergio Armstrong nos leva à década de 80 e ajuda a imergir na campanha responsável pelo Não à permanência do ditador.
Irrepreensível tecnicamente, a narrativa também é uma envolvente aula de história e é fácil enxergar o medo dos pejorativamente chamados comunistas de que a eleição serviria apenas para legitimar o golpe militar praticado na década de 70. Enxergando na votação a chance de conscientizar a população e reduzir a insegurança de eleitores reprimidos, os antagonistas de Pinochet pareciam nem sonhar vencer e desejavam apenas questionar, pela primeira vez ao longo de quase duas décadas por 15 minutos diários, as barbaridades praticadas no governo ditatorial. Eis que aparece o publicitário René Saavedra (Gael García Bernal), curiosamente visto apresentando uma bebida cujo nome é free (liberdade), com a proposta de uma campanha diferente, leve, simpática e mais próxima dos moldes publicitários.
A partir de um tema global, a alegria, e não exclusivamente apoiado no negativismo de relatos das vítimas do general, acompanhamos a rotina do publicitário e da sua equipe na criação do slogan e do jingle e as divertidas filmagens. E o sucesso da campanha viria a assustar a direita conservadora que partiu para o ataque contratando o chefe de René, Lucho Guzman (Alfredo Castro), para comandar a campanha do Sim. Além de proporcionar um embate moral entre chefe e empregado e a questionar a balança do poder, o antagonismo entre René e Lucho revela a faceta capitalista em que inimigos dão as mãos para vender seus produtos, como ocorre durante as ocasionais reuniões na agência publicitária. Mas nem a presença de “antigos amigos” bastaria para dirimir as animosidades existentes na campanha e as ameaças tornaram-se frequentes, embora longe do mesmo nível das atrocidades patrocinadas por Pinochet no seu governo.
Nesse sentido, René tem sua casa pichada e a segurança do lar afrontada por homens que não temem de se fazer presentes noite após noite na porta da sua casa. Humano e tridimensional, René também é um baita personagem interpretado com uma jovialidade rebelde por Bernal. Usufruindo a riqueza que lhe foi proporcionada pelo governo de Pinochet, na sua garagem há o carro do ano e na cozinha, o recém lançamento de um micro-ondas, também pulsa nele a veia revolucionário do pai, Manuel Saavedra, e é curioso como alguém de aspirações tão diversas se tornou o nome de desequilíbrio na campanha. Ele ainda acrescenta ricos elementos à personalidade de René, como o ímpeto na paquera com uma modelo durante os intervalos de uma filmagem ou a teimosa em achar que tem sempre razão – sendo o momento em que ele “encontra” o significado do arco-íris diante de uma reunião um dos mais divertidos do filme. Finalmente, seu último olhar cheio de sentimentos contraditórios é o bastante para aplaudir a atuação do ator.
Chocando com imagens de arquivo revoltantes, dentre elas o espancamento de um homem na cabeça, a conivência da igreja católica na figura do Papa com o regime ditatorial e o descarado pedido de perdão do general em rede nacional, No é uma obra de valor inestimável: um baita esforço técnico em uma narrativa política, publicitária e humana.
08) O som ao redor (Idem, Brasil, 2012) – Direção: Kleber Mendonça Filho.
Vencedor do Festival do Rio de 2012, O Som ao Redor é um recorte contemporâneo da sociedade de classe média obtida através de um olhar criterioso do cineasta Kleber Mendonça Filho a partir de uma vizinhança em Recife. Acompanhando com uma precisão documental e naturalista o dia-a-dia dos moradores, o cineasta abre a porta daquelas casas para conhecermos os seus hábitos mais íntimos além de refletir aspectos sociais do nosso país.
Com um olhar prosaico, Kleber revela o corporativismo dos flanelinhas em não revelar quem cometeu um furto em uma região, bem como o arranhão que um deles faz no carro depois de ter sido destratado; em outro momento, ele captura a polícia comprando itens piratas de um camelô. Mas é à (in)segurança na vizinhança que ele dedica a maior parte do tempo da narrativa, acompanhando a chegada da equipe chefiada por Clodoaldo (Irandhir Santor) praticamente impondo o seu serviço de segurança aos moradores, e não por menos os títulos de cada um dos três capítulos demonstram a importância dada ao diretor ao tema.
Faz sentido, já que Recife é uma das capitais mais violentas do país, embora Kleber deixe isso de lado com a sua preocupação nostálgica de retorno ao lar. Dessa forma o cineasta consegue recriar o gosto agridoce das memórias na visita às ruínas de um antigo cinema e no olhar melancólico de uma rua deserta abandonada em tom sépia. A amargura de ver a vida passar diante dos nossos olhos acaba encontrando reflexo na iminência da aposentadoria de uma doméstica ou no crime que um homem não consegue simplesmente esquecer.
E para um filme que tem som no título, a excepcional edição sonora transforma os acordes em elementos diegéticos do longa responsáveis por costurar as narrativas entre si: observe como o barulho da máquina de lavar roupa pode ser ouvido durante um bate-papo no prédio vizinho (e nesse momento da narrativa, todos sabem o que esse som representa), acrescentando dimensão a uma personagem que sequer está em cena. O mesmo ocorre com o barulho das bombinhas usadas para assustar o barulhento cão do vizinho e que retornam, no segundo plano, em um momento oportuno.
Valendo-se de uma narrativa livre, descompromissada e as vezes gratuita nas situações que ilustra, como durante a chegada de um televisor, Kleber Mendonça Filho compreende a dinâmica social e cultural de maneira a dar vida a uma vizinhança que poderia ser muito bem a nossa nesse ótimo O Som ao Redor.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.