Mesmo que ingenuamente, a religião é uma poderosa ferramenta de segregação e opressão e a arma mais precisa para praticar a justa violência vista e revista ao longo da história da humanidade. Ao menos é isso que Christian Mungiu, do excelente 4 meses, 3 semanas e 2 dias, tem a dizer com seu novo trabalho, o drama de terror Além das Montanhas, o representante romeno no Oscar.
Adaptado do romance de Tatiana Niculescu Bran, o qual é inspirado em um fato real, o roteiro acompanha o reencontro de Alina, vinda da Alemanha, e Voichita, a sua paixão da juventude e agora freira ortodoxa. No convento onde habita sob o rigoroso controle do Padre, chamado por todas de Papai, as freiras desempenham atividades na estrita obediência aos mandamentos e evitando recair em algum dos 464 pecados elencados em um livro de confissões. Encontrando dificuldades em aceitar a devoção irrestrita de Voichita, Alina extravasa as emoções de forma tão intensa a ponto de ser confundidas, equivocadamente como uma possessão demoníaca.
Com um olhar paciente para o desenrolar dos eventos, Mungiu as vezes transforma a contemplatividade (bom) em ritmo frouxo e arrastado (ruim), mas consegue construir uma narrativa sufocante apoiado na fotografia opressiva de Oleg Mutu e na escolha de planos longos que parecem extinguir completamente a força de vontade de Alina. Estes, aos poucos são substituído por planos com a câmera sobre os ombros, conferindo maior urgência a tragédia que pode ser antecipada desde o primeiro momento quando ouvimos a palavra exorcismo.
Estrelado por duas atrizes novatas, Cristina Flutur e Cosmina Stratan, vencedoras de prêmio no festival de Cannes, o amor reprimido e o peso da consagração a Deus acabam ressoando na fala suave e praticamente inaudível de Cosmina em contrapartida às ações menos elogiosas de Cristina que afastam definitivamente a menor esperança de reviver a juventude perdida.
Apresentando momentos revoltantes de violência eclesial, embora sem derramar uma única gota de sangue, e encerrando com o triste símbolo da impunidade representado pela imagem de um limpador de para-brisas, Além das montanhas é um trabalho extenuante e profundamente trágico.
21) Fogo (Idem, México/Canadá, 2012) – Direção: Yulene Olaizola.
Ambientada na Ilha do Fogo, no extremo norte do Canadá, esta narrativa parece estar mais preocupada em ser uma apresentação do National Geographic do que em contar uma história. Em linhas gerais, a diretor Yulene Olaizola segue a rotina dos habitantes da comunidade nada interessados em abandonar a ilha em que viveram durante anos na balsa que esta prestes a partir. Para retratar o comodismo e apego sentimental dos personagens à ilha, a cineasta recorre a longuíssimos planos da paisagem em que nada acontece e o abandono da vegetação ao vento e frio tornam-se evidentes.
Poderia funcionar se existisse algo sustentando a contemplatividade, mas simplesmente não há. Ao invés disso, os moradores da ilha Norman Foley e Ron Broders trocam poucas palavras sobre a condição metereológica e cerveja, e brincam com seus dois cachorros na tundra da região durante cerca de 61 minutos…
…que parecem durar uma eternidade naquela ilha.
22) Bergman & Magnani: a guerra dos vulcões (La guerra dei vulcani, Itália, 2012) – Direção: Francesco Patierno.
Curto documentário Contigo sobre a disputa amorosa e cinematográfica entre as lendas Ingrid Bergman e Anna Magnani, A guerra dos vulcões também é um esforço curioso de revelação dos bastidores de duas produções mornas filmadas nas longínquas ilhas Eólias que, no final das contas, deve satisfazer àqueles que se interessam pela história do cinema.
Durante o seu casamento com a musa Anna Magnani, o cultuado diretor italiano Roberto Rossellini descobriu uma carta enviada por Ingrid Bergman oferecendo-se para atuar em algum de seus filmes. A tentadora oferta pegou o galanteador diretor de surpresa, até que o sucesso de Paisà abriu-lhe as portas da meca cinematográfica e consequentemente pavimentou o acesso à maior estrela de Hollywood daquele momento. Bastou um esboço de história plagiado da ideia dos fundadores da produtora Panaria e o financiamento de Howard Hughes para que Rossellini e Bergman desembarcassem nas ilhas Eólias para rodar Stromboli. Para não deixar barato, Magnani, agora solteira, participou de Vulcano, filmado na mesma ilha e produzido pela Panaria.
Entretanto, como a história mostrou, não houve troca de farpas e nem constrangimentos mútuos. Bergman e Magnani disputaram uma guerra fria e silenciosa pelas bilheterias e crítica, dividindo a Itália no meio. Dessa maneira, não havendo material disponível, o documentarista Francesco Patierno aposta em uma montagem inusitada e especulativa que combina trechos dos filmes das atrizes para passar a ideia do que elas poderiam ter vivido, e em certo momento é introduzida uma cena em que Magnani está chorando por causa da traição.
Tudo não passa de uma grande brincadeira, é verdade, restando mesmo o gostinho meio metalinguístico de passear pelo modo de trabalho de Rossellini, incapaz de honrar o cronograma e orçamento, ou pela direção de William Dieterle pontual e eficiente. Ou ainda a recepção de ambos os filmes pelo público e as consequências da impulsividade do romance de Bergman e Rossellini.
23) A memória que contam (Idem, Brasil, 2012) – Direção: Lúcia Murat.
“A desgraça dos outros é fatalidade, mas a nossa é injustiça” afirma Irene a seu filho Eduardo tentando não somente justificar as tragédias da revolução e luta contra a ditadura, como também aceitar que a sua amiga Ana, internada na UTI, está enfim encontrado a paz procurada buscada pela idílica praia deserta de sua memória. Através das memórias que confrontam passado com o presente, a cineasta Lúcia Murat criou uma obra sensível e melancólica acerca das cicatrizes da ditadura brasileira e o peso carregado nas costas dos homens e mulheres que combateram o regime opressor militar.
Assim, o grupo de amigos reunido no saguão do hospital e composto por Irene, Ricardo, Henrique, Zezé, o ministro da justiça José Carlos e o revolucionário italiano Paolo, junto de seus respectivos filhos, recorda a presença de Ana e o envolvimento da moça em importantes eventos da história, como o rapto do embaixador norte-americano. Ao mesmo tempo em que vivem a triste expectativa da morte da amiga, aquelas pessoas têm problemas particulares para lidar, sobretudo Paolo que foi preso pela Polícia Federal e está ameaçado de extradição ou José Carlos com a instauração da comissão da verdade para apurar crimes ocorridos na ditadura. E esse é o maior problema da narrativa: sua incapacidade de conciliar de maneira satisfatória a multitude de histórias que Lúcia Murat deseja contar, o que fica claro no instante em que um personagem é anistiado de forma nada convincente.
Por outro lado, a cineasta acerta no tom mais intimista recorrendo à presença viva de uma jovem Ana, interpretada pela talentosa Simone Spoladore, nas memórias dos amigos ainda que as revelações existentes no íntimo de cada um venham de maneira expositiva e não natural como poderia se esperar. Presença intensa na vida dos outros, Ana ainda simboliza a onipresente ditadura, funcionando como a metáfora da superação definitiva de traumas do passado. Dessa maneira, a escolha da paleta de cores é apropriada vindo a refletir o remorso e a culpa existente em uma época marcada por dor.
Apropriando-se dos personagens mais jovens, principalmente os primos Eduardo e Chloe, para refletir a nova geração que, embora viva as consequências do terrorismo e lutas dos pais durante a ditadura, conviveu com o período só através de livros, Lúcia Murat advoga a preservação das memórias de uma maneira tocante e simples neste bom filme.
24) Arcadia (Idem, Estados Unidos, 2012) – Direção: Olivia Silver.
Sempre que o cinema independente norte-americano quer desenvolver a metáfora de um personagem que precisa se descobrir e reencontrar o seu caminho em que eles pensam? Em uma viagem de carro óbvia e que normalmente não leva a lugar nenhum, embora force os personagens a encarar frustrações e problemas de formas nem um pouco convincentes. Isto é o que acontece quando Tom (John Hawkes) empacota a sua vida em algumas sacolas e parte com os três filhos Greta, Caroline e Nat para a cidade de Arcadia, onde uma proposta de emprego o espera após 6 meses.
Existe também outro motivo para a sua partida e envolve a sua esposa cujo nome sempre é trazido à tona com expectativa por Greta (Ryan Simpkins), uma garota de 12 anos que ainda não entrou na puberdade e carrega consigo um coelhinho de pelúcia para todos os cantos, mesmo quando saí de pijamas a noite à procura do pai e o encontra acompanhado por outra mulher em um bar de gosto duvidoso. Eterna rebelde mal-humorada, incapaz de obedecer ao menor pedido do pai de permanecer no carro, Greta ganha o primeiro lugar no prêmio aborrecente do ano, e parece ficar claro que a garota estava em uma constante TPM ao longo da narrativa.
Mas para evitar o ar depressivo que acompanha a protagonista, a diretora e roteirista Olivia Silver também acrescenta o garotinho Nat (Ty Simpkins), o irmão caçula clichê que sabe tudo sobre aviões e luas de Júpiter, acompanha a irmã para cima e para baixo além de servir de função cômica em momentos apropriados (embora no fundo saibamos que ele é só um artifício narrativo).
Para rechear o entediante percurso de 5.000 km, ou seja, cerca de 90 minutos, Olivia Silver inclui situações descartáveis como uma briga no trânsito que resulta na ida à delegacia e uma lição de moral duvidosa, a hospedagem na casa do amigo de Tom e a ida ao Grand Canyon genérico. Se tudo parece servir de gordura, a verdade é que o filme é somente o ensaio para o instante em que Tom confessar para sua filha dos porquês que o levaram a ir embora – e não consigo compreender porque ele demora tanto a fazê-lo, uma vez que isso calaria definitivamente a chata matraca de sua filha abusada.
Pobre John Hawkes desperdiçando seu talento em bobagens assim.
25) Antiviral (Idem, Canadá/Estados Unidos, 2012) – Direção: Brandon Cronenberg.
O que diferencia uma boa distopia da outra não é a força da premissa, apesar desta ser bastante importante, mas a maneira com que o cineasta suga o seu potencial na narrativa e a expande até às últimas consequências provocando reflexões, as vezes óbvias, da sociedade contemporânea e de nosso estilo de vida. Portanto, é uma boa surpresa que o doentio ponto de partida de Antiviral resulte em uma obra intrigante bem próxima de alcançar o seu potencial máximo. Mais ainda, o filme tem o mérito de apresentar ao cinema o diretor Brandon Cronenberg, que puxou do pai bem mais do que só sua fixação pelo bizarro, como ainda o seu talento.
Escrito por Brandon, a história revela o perturbador novo estágio em que se encontra a cultura das celebridades (bem definidas como sendo “alucinações coletivas”): corporações especializam-se em vender doenças não-letais extraídas de celebridades, venéreas em sua maioria, a fãs que desejam ter uma conexão ainda maior com os seus ídolos através de experimentar os mesmos sintomas. Syd March (Caleb Landry Jones) trabalha na mais conceituada empresa do ramo e é um fã obcecado por Hannah Geist (Sarah Gordon). Certa vez, após coletar um novo resfriado de Hannah, Syd inocula em si mesmo o agente virótico somente para descobrir estar infectado por uma doença letal artificialmente criada para matar a celebridade. Com a saúda degradando-se rapidamente, ele precisa descobrir uma cura enquanto desvenda uma grande conspiração.
Apresentando conceitos intrigantes, como um dispositivo responsável por desenhar a face dos vírus e açougues especializados em vender pedaços de carne de celebridades (!) produzidos através de suas células, e frisando as consequências naturais desse universo sádico no surgimento de colecionadores de doenças e aumento da pirataria, Brandon Cronenberg é mais eficiente em manifestar ideias do que em desenvolvê-las apropriadamente, esquecendo algumas pontas desamarradas no meio do caminho. Nada que comprometa demasiadamente a narrativa banhada no asséptico branco pálido do rosto de Syd e no ar quase angelical e etéreo de Hannah prestes a serem manchados pelo sangue abundantemente derramado.
Pecando apenas na atuação exagerada de Caleb Jones, e que falta faz um grande talento como Joseph Gordon-Levitt nessas horas, mas retribuindo parcialmente com uma presença inspirada de Malcolm McDowell, Antiviral é uma narrativa questionadora de boas ideias que comprova que talento corre no sangue dos Cronenberg.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.