Durante 42 anos, a atriz Liv Ullmann e o diretor Ingmar Bergman viveram uma história de amor ímpar relatada pela atriz, hoje com 73 anos, no documentário Liv & Ingmar – Uma história do amor. Bastante saudosa, a atriz recorda em detalhes como Ingmar mudou a sua vida, e bem-humorada mergulha nas idiossincrasias do mestre que chegou a comer as cartas de amor recebidas para não serem divulgadas e que trancava as atrizes em seus aposentos para que elas não farreassem a noite.
Mas como em toda autêntica história de amor nem tudo eram rosas e de acordo com Liv, Bergman, mesmo recluso em uma ilha, era possuído por um ciúme violento, psicológico e sem limites. Ele também era capaz de vinganças cruéis, como expor Liv e Max von Sydow a um frio insuportável na sequência do barco de Vingança (algo que ela relata novamente com bom humor). Esta maneira reverente com que ela expõe o lado menos agradável do mito Bergman preenche as diversas lacunas deixadas pela escassez de material, ajudando o espectador a montar o intrincado mosaico do complexo cineasta.
Ilustrando a evolução do relacionamento através de trechos dos filmes de Bergman em que Liv atua, o diretor Dheeraj Akolkar disserta sobre a própria obra do cineasta e oferece uma coerente interpretação da evolução de suas narrativas até o seu último trabalho, o telefilme Saraband.
Com a fotografia excelente de Hallvard Bræin, investindo em uma paleta azulada que confere melancolia às lembranças de Liv Ullmann, essa bela e comovente história de amor é uma das grandes recompensas que uma arte tão apaixonante como o cinema tem a oferecer àqueles que a abraçam sem ressalvas. Mesmo estando estes sentados nas salas de cinema, detrás ou em frente às câmeras.
39) A parte dos anjos (The Angel’s Share, Inglaterra/França/Bélgica/Itália, 2012) – Direção: Ken Loach.
Embora não tenha assistido a seus dois últimos filmes, A Rota Irlandesa e À Procura de Eric, e portanto consciente de talvez falar alguma impropriedade, A Parte dos Anjos representa uma mudança significativa no teor das produções de Ken Loach, habitualmente entregue à crítica social em narrativas cujo protagonista sempre é um membro da classe média, um proletário. Neste novo trabalho, Loach não abandona o interesse nos desfavorecidos, embora o faça com um salutar bem-humor que o afasta de suas produções mais sérias.
O roteiro escrito por Paul Laverty apresenta Robbie, um jovem temperamental e brigão egresso da prisão e que está de novo diante da corte para responder pela acusação de agressão. Prestes a se tornar pai (a sua namorada Leonie está grávida), Robbie acaba posto em liberdade, mas condenado a prestar serviços comunitários. Ao se apresentar para cumprir a pena, ele conhece Harry, o bondoso diretor que o ensina a apreciar e degustar uísque, e uma turma de divertidos condenados, incluindo uma cleptomaníaca e o atrapalhado Albert. Enquanto isso, Robbie é ameaçado por um bando rival, convidado a se retirar do país pelo pai de Leonie, além de ver as suas chances de encontrar um emprego reduzidas significativamente.
Tendo muitas subtramas para desenvolver e uma dezena de personagens a explorar em pouco mais de 100 minutos, fica evidente que o maior defeito da narrativa de Ken Loach é a sua falta de foco. Em um momento, Robbie lida com as consequências do crime cometido; noutro, ele busca uma solução para permanecer com sua namorada; e depois de escapar de seus inimigos, ele acaba planejando um inusitado roubo milionário com seus novos amigos. Não existe tempo bastante para digerir as informações e os personagens estereotipados substituem o bom desenvolvimento de Robbie que vinha sendo realizado até então.
Sufocado pela pressa de conclusão da narrativa, a execução do roubo é bem conveniente e as subtramas abertas anteriormente terminam desprezadas. Dessa maneira, o que evita que este seja só um filme descartável é o bom-humor de Ken Loach, sendo Albert o mais divertido do longa. Com seus óculos fundo de garrafa, um QI de dois dígitos e paixão por álcool, o cara não faz ideia de como relacionar os nomes Mona e Lisa e comete uma das ações mais impulsivas do cinema neste ano (um brinde, por assim dizer). Capaz de arrancar risadas com um simples olhar, ele e seus amigos acabam salvando um dos mais irregulares trabalhos de Ken Loach.
40) Paixão e acaso (Idem, Brasil, 2012) – Direção: Domingos Oliveira.
Você não precisa esperar até os créditos finais com a tradicional fonte branca sobre um fundo preto e o casting em ordem alfabética para descobrir que a inspiração dessa comédia de Domingos Oliveira só poderia ser o cinema de Woody Allen. A protagonista é a psicanalista neurótica Inês que enxerga o fantasma do pai falecido Victor (elemento já utilizado por Woody em Simplesmente Alice) e cuja história é contada por um narrador que rompe a quarta barreira, como aconteceu diversas vezes na filmografia do cineasta, o recente Tudo pode dar Certo é o exemplo desta vez. A presença de uma grande quantidade de personagens excêntricos só reforça mais a comparação.
Na história, Inês apaixona-se por Fábio apenas para, alguns dias depois, conhecer o pianista Bento e dormir na sua casa. O problema é que Bento e Fábio são pai e filho. Ao mesmo tempo, Inês tem que administrar dois pacientes, o endividado Tavares, e Otávio, sujeito dominado pela agenda e cuja filha tem um caso com o vizinho casado. Apesar de proporcionar boas risadas, sobretudo nos relatos absurdos contados pelos pacientes, a narrativa frequentemente se perde na simples observação de esquisitices e na tentativa de associar as subtramas acessórias com a insegurança de Inês.
Também não contribui à narrativa o fato de que o narrador, além de inteiramente descartável, é um baita chato, ou de que as regras para o surgimento de fantasmas nuncas fiquem bem claras ou ainda de que alguns atores parecem estar recitando os diálogos ao invés de interpretá-los. Pode ser ainda problema da fotografia tosca e desconfortável de Vinicius Brum e sua insistência em usar filtros nas sequências noturnas.
Mas o que pesou mesmo em Paixão e Acaso foi a tentativa falha de emular Woody Allen só na forma ao invés de ir adiante no conteúdo, no cinismo e no polimento dos diálogos.
41) Entre o amor e a paixão (Take this Waltz, Canadá/Espanha/Japão, 2011) – Direção: Sarah Polley.
Sarah Polley pegou a crítica e o público de surpresa com o lançamento do doce e sensível Longe Dela, o qual ela dirigiu em 2006. Retornando à cadeira de diretora, a também roteirista e atriz deu um passo para trás nesse interessante, porém redundante Entre o Amor e a Paixão. Nele, Michelle Williams interpreta Margot, a carente esposa do cozinheiro Lou (Seth Rogen). Um dia, ao retornar de uma viagem, ela se apaixonar pelo misterioso Daniel (Luke Kirby), vindo a descobrir que ele é o vizinho do outro lado da rua. E a partir daí, você já pode supor o restante.
Não que o roteiro de Sarah Polley seja previsível, algo que definitivamente não o é. Seu maior problema é o enfoque já desgastado da insatisfação provocada pela monótona rotina do casamento, representado na insistência de Lou em cozinhar somente frango e nas brincadeiras realizadas no piloto automático pelo casal. Elas ainda servem para constatar que Margot e Lou mais parecem dois companheiros de quarto do que um casal apaixonado e os repetidos “Eu te amo” ganham mais e mais um tom fúnebre e acomodado.
Fica, portanto, fácil perceber como Margot rapidamente se interessa por Daniel, a sua oportunidade de experimentar de novo uma grande paixão. Questionando seus sentimentos e a fidelidade a seu marido e relutando em se entregar a Daniel, Margot é uma mulher tridimensional bastando a sinceridade de suas súplicas angustiadas e o olhar marejado para constatar isso (e para mim, Michelle Williams junto de Jennifer Lawrence são as legítimas herdeiras do legado de Meryl Streep). É uma tolice, portanto, incluir uma cena em que a personagem é conduzida de cadeira de rodas no aeroporto somente para justificar sua fobia, ou a aula de hidroginástica e o chuveiro usados como alegoria para dividir a paixão do amor.
Aliás, ao se afastar da exposição excessiva e da influência da produção independente norte-americano que prefere ser astuta, e se dedicar a detalhes, Sarah Polley sempre acerta. A direção de arte da residência de Margot e Lou e uma poluição visual de seu interior na abundância de cores, luzes e ornamentos simboliza a felicidade artificial do casal, bem como o beijo dado sobre uma janela o afastamento progressivo. Então por que escolhe como profissão de Daniel a condução de carruagens?!
Contando com uma boa trilha sonora e uma fotografia calorosa, mas eventualmente fria e distante, Entre o Amor e a Paixão deveria ter sido encerrado 15 minutos antes, na cena que se passa em uma praia, e não se estender no sentimentalismo e mensagens supérfluas que nada acrescentam à jornada de autodescoberta de Margot.
P.S.: a minha sugestão acima privaria o espectador de acompanhar as elipses que pontuam o relacionamento de Margot e que renderiam um curta econômico e revelador.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
1 comentário em “Festivais | 36a Mostra de São Paulo – Dia 9”
Conterrâneo, quem sabe em 2013 estarei junto com vc e outros membros da SBBC na Mostra.