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Crítica | Possessão

The Possession | Estados Unidos/Canadá | 2012 | Diretor: Ole Bornedal | Roteiro: Juliet Snowden e Stiles White baseado no artigo de Leslie Gornstein | Elenco: Jeffrey Dean Morgan, Natasha Calis, Kyra Sedgwick, Madison Davenport, Matisyahu, Grant Show | Duração: 1h32min

Ao longo de praticamente toda a duração de Possessão, a branca da cor de leite Emily apresenta uma mancha escura no seu dedo ao redor de um anel que encontra dentro de uma caixa velha. Com o decorrer da trama, a mancha se expande mais e alcança toda a sua mão, mas ninguém, nem seu pai, mãe e irmã mais velha parecem notar; ora, sequer o hospital onde a garota é internada para uma série de exames observa que existe algo muito errado ali (um leigo a associaria instantaneamente a uma gangrena). E apesar de todos os enquadramentos que focam exclusivamente a mão negra da menina, de nada serve esse detalhe, desprezado completamente na resolução. Feito este preâmbulo, a falta de zelo e atenção aos detalhes, além das ações incompreensíveis dos personagens condenam este que é um dos menos eficientes filmes de terror lançados neste ano, empalidecendo por comparação até diante do recente e mediano A Entidade (que também não era grande coisa).

Co-produzido por Sam Raimi, cuja companhia já regurgitou muitas porcarias no mundo, o filme dirigido pelo dinamarquês Ole Boredal, em sua estreia em Hollywood, demonstra a sua intenção kitsch logo no instante em que uma senhora de idade é arremessada de um lado para outro e violentamente contorcida, vítima da influência da mística caixa. A partir daí, o roteiro de Juliet Snowden e Stiles White revela a família composta pelo atencioso treinador de basquete Clyde (Jeffrey Dean Morgan), pai da dispensável Hannah (Madison Davenport) e de Emily (Natasha Calis, resultado do encontro da Regan MacNeil de O Exorcista, Samara de O Chamado e, hum, o Homem-Aranha) e que está de mudança após o divórcio com Stephanie (Kyra Sedgwick), com quem mantém um relacionamento amistoso. Até que, em uma venda de garagem da idosa que milagrosamente sobreviveu ao prólogo, Clyde compra a citada caixa depois do pedido de Emily. É a deixa para que uma entidade sobrenatural, agora o dybbuk Abyzou, possua a garotinha (“eu me sinto diferente”, ela afirma enquanto o público boceja) e atormente a vida da família das mesmíssimas formas com que estamos acostumados.

Partindo dos habituais alarmes-falsos e escalando em intensidade e urgência à medida em que o tempo avança, os “sustos” não fogem da rigorosa combinação de trilha-sonora e a construção de praxe da atmosfera que envolve personagens que caminham lentamente em direção ao desconhecido, portas fechadas, o acender e apagar das luzes, etc. Porém, bem mais assustador do que se deparar com a impassiva Emily cercada de mariposas no quarto, é a desproporcionalidade da reação histérica de Hannah ao encontrar um desses insetos sob a colcha do lençol ou ao chegar na cozinha destruída, fruto da ação de um esfomeado guaxinim. Sensível como poucas, óbvio que Hannah teria uma única atitude após Emily cravar um garfo na mão do pai durante o café-da-manhã: permanecer quieta como se nada tivesse acontecido e continuar escutando música no seu iPod.

Aliás, questionar as absurdas ações dos personagens é um dos aspectos mais divertidos da narrativa: Clyde não tenta racionalizar, nem compartilhar com a ex-esposa detalhes do que está acontecendo com a filha, preferindo convenientemente culpar seu divórcio, até decidir bancar o exorcista. Neste instante, ele tromba com Hannah que sequer faz questão de descobrir o que o pai pretende com sua irmã, desaparecendo da casa mesmo após ter testemunhado a suposta agressão dele contra Emily (retratada em uma cena patética). Reputado como amável e gentil na maior parte do tempo, apenas para ser acusado no momento oportuno de instável e único responsável de destruir a família, Clyde, ainda que dignamente interpretado por Jeffrey Dean Morgan, é um personagem enigmático cujas ações mais sensatas e bem-intencionadas carecem do mínimo de bom-senso, e ao descartar a caixa no lixo me questionei porque o sujeito não a destruía de uma vez.

Carente do mínimo resquício de inteligência, Possessão também nos apresenta um ultramoderno aparelho de ressonância magnética capaz de enxergar espíritos (!), mesmo que o faça sem querer, e falha grosseiramente ao situar a sala de autópsias adjacente à de fisioterapia, revelando desconhecer inclusive a disposição interna de hospitais. Assim, entre uma caixa que aparece sabe-se lá como dentro da mochila do colégio de Emily e os inexplicáveis fades da montagem que quebram o ritmo da narrativa, não há nada que se salve nesse terror rasteiro incapaz de assustar e mau-caráter o bastante para introduzir um gancho forçado para a sequência.

Passou da hora de repensar este subgênero do terror.

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1 comentário em “Crítica | Possessão”

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