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All to Play For

3/5

Rien à Perdre

2023

112 minutos

3/5

Diretor: Delphine Deloget

Se você já teve a vontade de pegar um personagem e estalar os dedos diante de seu rosto para acordar para a realidade, é isto que senti com a protagonista Sylvie no formulaico a princípio e absurdo na sequência All to Play For (Sinto-me mal em iniciar o texto assim, pois pareço ter jogado no lixo qualquer forma de empatia para julgar Sylvie, uma mãe solo, que trabalha a noite em um bar para poder sustentar a criação dos dois filhos da forma como pode. Mas não é bem assim, e você entenderá a razão no texto).

Como faz nas noites de trabalho, Sylvie deixou o filho caçula Sofiane aos cuidados do irmão mais velho Jean-Jacques. Sozinho em casa, pois o irmão atrasou-se no ensaio musical, um esfomeado Sofiane tentou fritar batatas e provocou um incêndio na cozinha, causando-lhe queimaduras no corpo. O hospital, como de praxe, notificou o Conselho Tutelar, que, depois de tentar uma e duas vezes contato telefônico, bateu na porta da casa de Sylvie e, munido de uma ordem judicial, retirou Sofiane para uma casa de acolhimento temporário. Agora, Sylvie tentará reaver o filho no drama dirigido por Delphine Deloget adaptado do livro escrito por Julia Kowalski.

Sylvie, interpretada pela intensa (aqui, demasiadamente intensa) Virginie Efira, age até com razoabilidade no início, apesar de ter o pavio curto e explodir com frequência. Ela contrata uma advogada e procura agir dentro das expectativas da burocracia francesa, frequentando um grupo de ajuda para mulheres que perderam a guarda dos filhos e reunindo mensagens abonadoras para apresentar à juíza do caso. Até este momento, com a cara de India Hair, o Conselho Tutelar não é representado como um inimigo, porém como um órgão pedagógico e que defende o interesse da criança em situação de perigo. Essa harmonia é quebrada à medida que a espontaneidade e destemperança de Sylvie, a imaturidade de Jean-Jacques e a desumanidade do Conselho Tutelar tornam uma situação rotineira em algo kafkaniano.

Assim, o roteiro de All to Play For parece discutir menos a situação da maternidade-solo na França e mais a burocracia de uma organização que somente dificulta a reunião entre mãe e filho. Para ilustrar isso, apela a pontos de virada no enredo que beiram o absurdo, ridículo e desarrazoado: a visitação é determinada na tarde das quartas, ainda que seja impossível para Sylvie deixar seu trabalho na data e horário marcados. Ao invés de as partes entrarem em acordo (o mínimo razoável), Sylvie erraticamente caminha ao longo de acontecimentos que a levam a protestar erguendo a blusa em um estabelecimento público. Tal instante não é pior do que a agressão cometida contra uma personagem (uma cabeçada), que denuncia em desfavor da jornada da protagonista, e faz-nos duvidar até do que a direção defende em se tratando de qual o melhor destino para Sofiane.

A diretora Delphine Deloget encena de modo realista, com a câmera perto dos personagens e a imagem mais crua, um roteiro em que o comportamento dos personagens fogem do que é real. Cada ação ou desdobramento nega a imagem da diretora. Por mais que o design de produção da casa denote a bagunça que é o espaço doméstico e seja um retrato fiel da vida caótica daquela família, a presença de uma galinha vulnera este pacto de realismo em troca de uma figuração cômica do animal e de um comportamento materno incapaz de dizer não aos pedidos de Sofiane (que é enxergado como um jovem disfuncional, uma condição que é explorada pelo roteiro com efeitos menos louváveis).

Esse jogo do roteiro, a propósito, provoca resultados incoerentes com os personagens: em uma sequência, a dona do estabelecimento onde Sylvie trabalha é generosa e até empática à situação da funcionária; já em outro momento, não hesita em colocar os filhos no meio da conversa para criticá-la, com isto causando um conflito narrativo que desencadeará reação específica. Quer dizer, os acontecimentos são formulados com o resultado em mente, e não com a verossimilhança da ação em primeiro lugar. Eles procuram conduzir os personagens para este ou aquele caminho, mesmo que para isso vulnerem a credibilidade do enredo em oposição ao realismo ambicionado pela direção.

A incoerência da trama (apesar da premissa ser instigante, em primeira análise) contradiz a direção e ainda a atuação de Virginie Efira. A atriz experiente alterna entre os momentos de serenidade, em que realiza a autocrítica de sua maternidade com o olhar desencontrado de seus sentimentos, e os momentos de explosão, em que é sufocada pela intensidade de sua atuação. Não vemos mais Sylvie, apenas Efira vociferando a plenos pulmões, na evidência definitiva de que All to Play For coloca em segundo plano o melhor interesse da narrativa, em favor de artifícios e artimanhas que não fazem o menor sentido às suas ambições.

Crítica publicada para a cobertura do Festival de Cannes 2023

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