Cunhada por William Shakespeare, a clássica frase “há algo de pobre no reino da Dinamarca” ainda permaneceria oportuna muito além da ficção de Hamlet conforme comprovado no drama de época O Amante da Rainha, o representante dinamarquês no Oscar 2013. Acompanhando os intrincados relacionamentos políticos da corte no final do século 18, a história apresenta o rei insano e provavelmente autista Christian VII, cuja participação no governo limita-se à assinatura de decretos formulados pelo Conselho, o verdadeiro regente. Até que alguns eventos mudam a trajetória do rei: o casamento com a inglesa Caroline Mathilde e a sua fiel amizade com o médico Johann Struensee.
Em uma época em que o Iluminismo era combatido pelo governo sedento pelo poder e obras como as de Rousseau e Voltaire eram censuradas, Struensee tornara-se um pivô essencial para a evolução de um Estado dinamarquês tirânico e explorador do trabalho campesino a outro mais justo e humano. Óbvio que isto provocou oposição dos nobres, cujos luxos vinham sofrendo cortes sucessivos para adequar o orçamento às novas leis promulgadas. Liderados pela rainha Juliane Marie e pelo ministro Ove Høegh-Guldberg (recordei-me dele de O Espião que Sabia Demais), eles planejam uma ofensiva contra Struensee e o rei usando o relacionamento extraconjugal daquele com a rainha Caroline (que produzira a filha bastarda Augusta).
Como em toda corte europeia que se preze, as tramas políticas oferecem um riquíssimo campo para traições, mudanças de lado e golpes de Estado e a narrativa comandada por Nikolaj Arcel sempre acerta quando a fria fotografia invernal povoa os corredores do palácio dinamarquês e revela homens manipuladores e exclusivamente voltados a seus próprios interesses. Nem Struensee escapa, revelando-se o menos sujo da corte apenas graças às causas sociais que defende, mas não pela forma com que as põe em prática. Nesse sentido, Mads Mikkelsen faz um grande trabalho em criar um personagem bem-intencionado, porém que não reluta sequer um instante ante o convite de integrar o palácio, rapidamente assumindo uma posição controladora sobre o rei.
Enquanto isso, Mikkel Boe Følsgaard constrói um Christian VII consciente de sua doença mental e inclinado a fazer um bobo de si próprio ao interromper uma peça teatral ou imitar o seu cachorro, nomeado conselheiro. Dado a grosserias e a um comportamento irascível, ele provoca ódio na rainha Caroline, vivida por Alicia Vikander, que embora tenha uma beleza nobre e pura, é ironicamente a peça mais apagada do tabuleiro e nem mesmo a sua função de narradora da história consegue aproximá-la mais do espectador.
Falhando na maioria das vezes em que enfoca o relacionamento extraconjugal do título, como nos instantes em que Caroline e Struensee agem imprudentemente igual a um casal de adolescentes dando as mãos em público, O Amante da Rainha felizmente não investe muito de suas mais de 2 horas no caso, que não se revela imprescindível e determinante ao desfecho, havendo outras maneiras que a nobreza poderia confrontar Struensee afora as fofocas.
Contando ainda com uma direção de arte impecável e uma fascinante reconstituição de época, como é de praxe neste tipo de produção, O Amante da Rainha além de funcionar como mosaico das disputas do poder no auge do Iluminismo, converte Shakespeare em Nostradamus e concretiza enfim a sua famosa frase, ou melhor, sua profecia.
53) Um alguém apaixonado (Like someone in Love, França/Japão, 2012) – Direção: Abbas Kiarostami.
Quando as múltiplas camadas esperadas de uma obra de Abbas Kiarostami se encontram com o estilo encantador e simples de Yasujirô Ozu, um dos cineastas japoneses mais importantes, o resultado só pode ser um filme como Um Alguém Apaixonado. Com uma câmera estática, documentando o ambiente mesmo sem haver personagens de destaque na cena, e usando discretíssimos movimentos de câmera e uma mise-en-scène cuidadosa, tudo isto remetendo ao trabalho de Ozu, o cineasta iraniano acrescenta à discussão sobre carência emocional e mentiras que sustentam nossos relacionamentos uma pitada de metalinguagem.
No roteiro de sua autoria, Abbas narra a modesta história da garota de programa Akiko enviada por seu cafetão ao apartamento do idoso Watanabe (o excelente Tadashi Okuno), um aposentado professor de sociologia cuja direção de arte do apartamento envolto de livros diz exatamente tudo sobre a sua personalidade que precisamos saber. Na manhã seguinte, mesmo não tendo ocorrido nada sexual entre eles, Watanabe oferece carona a Akiko para prestar um exame na faculdade, onde ela tem uma acalorada discussão com o esquentado namorado Noriaki. Este termina confundindo Watanabe pelo avô de Akiko e expõe a sua vontade em desposá-la, mesmo que isto esteja fora dos seus planos.
Com naturalidade, Kiarostami desenvolve planos bem longos em que muito do que ocorre ao redor funciona como distração para aquilo existente debaixo dos olhos: as mentiras contadas pelos personagens para sustentar seu estilo de vida. Akiko engana Noriaki de que está em um restaurante com sua amiga, quando na verdade está em uma danceteria; já Watanabe não hesite de abraçar a carapuça de avô da moça, ainda que ele seja tão avô dela quanto o é de Noriaki. E nesse ínterim, Noriaki é vitimizado ao ser o único sincero da narrativa inteira.
Escondendo os pontos de virada e as revelações do roteiro fora de campo, Kiarostami discorre sobre a fragilidade emocional de seus personagens ao não revelar uma reação histérica de Akiko à proposta de Hiroshi, sendo inclusive a solidão o sentimento mais relevante da narrativa. Frequentemente enquadrando os personagens isolados no quadro – observe como durante a visita ao apartamento, Akiko está em cômodo separado ou não divide a cena com Watanabe – ou distanciados por uma barreira intransponível, como o espelho central do carro ou a divisória que separa o apartamento de Watanabe da sua vizinha em frente, Kiarostami melancolicamente revela a metrópole japonesa em que o contato humano é prescindível, e para isso precisa somente de três atuações centrais para provar sua teste.
E quando um diretor faz tanto com tão pouco e no meio do caminho homenageia um cineasta lendário, é mais uma oportunidade de tirar o chapéu para o genial Abbas Kiarostami.
P.S.: a solidão e melancolia se fazem presentes no lindíssimo jazz de Ella Fitzgerald Like Someone in Love.
54) Infância Clandestina (Idem, Argentina/Espanha/Brasil, 2012) – Direção: Benjamín Ávila.
Similar ao Brasil, a Argentina viveu uma ditadura militar repressiva e que atravessou anos de violentos combates contra grupos ditos terroristas. Filho de revolucionários, o garoto Juan (o talentoso e expressivo Teo Gutiérrez Romero) retorna à casa debaixo do manto da clandestinidade e do nome falso de Ernesto (uma homenagem a Che Guevara). Enquanto se adapta ao novo colégio, Juan (ou Ernesto) apaixona-se por María, a irmã de um colega de classe, e começa a passar as tardes com ela até que a brutalidade da ditadura novamente volta a bater na sua porta.
De acordo com o ponto de vista de uma criança ingênua, mas embrutecida pela constante mensagem de guerrilha respirada diariamente em sua casa, o diretor Benjamín Ávila tem a boa decisão de transformar os momentos de maior violência e intensidade em recortes de graphic novel. Mas apesar de retratados desta maneira, os eventos não perdem a sua intensidade diante da expressividade dos traços dos desenhos (sobretudo, os olhos de Juan), sendo inclusive um recurso empregado apenas em momentos capitais e, portanto, não exaure pela repetitividade.
Assim, compartilhando com o espectador à maneira com que Juan enxerga os conflitos travados e que culminam na morte de personagens importantes ao garoto, acompanhamos belíssimos e emblemáticos momentos em que o seu pai Horácio recebe um tiro na perna e o seu sangue flui em direção ao xixi do garoto assustado deitado na calçada. E o sol amarelo na bandeira da Argentina e que assombra o espírito revolucionário de Juan é remetida em outros momentos, como na fita amarela que María usa durante uma aula de ginástica.
Fotografado com ímpar talento, o diretor de fotografia Gustavo Giani alterna entre a nostalgia do sépia que retrata os momentos mais puros da infância de Juan e a paleta de cores esverdeadas remetendo ao tom associado aos uniformes de guerrilheiros, como Fidel Castro ou Che. Portanto, é uma triste ironia que o momento mais antecipado por Juan, o beijo em María, seja dado sob o verde opressivo, afastando qualquer chance de sucesso daquele relacionamento pueril.
Representando a Argentina no Oscar de 2013, Infância Clandestina pode seguir a cartilha de uma história quadradinha para emocionar, sendo somente natural enxergamos os fios que manipulam nossos sentimentos. Porém, ainda que ingenuamente enxergada por Juan, a narrativa não perde sua força, e quando vemos suas mãos trêmulas empunhando a arma para proteger sua irmãzinha, ficam evidentes as chagas provocadas pela ditadura que não precisa, ao menos neste exemplar, expor sua violência para chocar.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.