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Um Animal Amarelo

Um Animal Amarelo

115 minutos

Quando “Um Animal Amarelo” inicia, o espectador é apresentado ao obstinado Sebastião (Herson Capri), que largou a família no Rio de Janeiro para perseguir um sonho de riqueza no eldorado brasileiro em 1984. A fim de aliviar a solidão, Sebastião mantém um relacionamento com o músico Juliano, e obedece às ordens ininteligíveis do fêmur que segura nas mãos como cajado que o guia, enquanto é visitado pela presença da criatura fantasiosa do título. Tudo muda após o nascimento de seu neto, Fernando, cujos bens herdados nada mais são do o osso mágico e a onipresença do animal amarelo. É a evidência cinematográfica de como nossas histórias começam antes de nós mesmos, e o que fazemos é apenas tentar remediar os erros do passado na expectativa de construir um futuro melhor.

Entre umas e outras, este Big Lebowsky brasileiro interpretado por Higor Campagnaro é o homem branco tipicamente alienado às questões que o cercam, ainda que pareça determinado em conhecer a história da formação nacional na triangulação entre três nações: a nossa, Portugal e Moçambique. A aparência é de ser uma autocrítica do cineasta Felipe Bragança, que, embora não seja o Fernando, nele tem seu alter ego marcado nesta busca em saber mais, o que o leva a viajar aos países citados e a vivenciar a realidade de cada um: a decadência colonial portuguesa e a exploração moçambicana, esta em particular, expressa em múltiplas maneiras: o comércio ilegal de pedras preciosas e, por consequência metafórica, o mercado escravagista, pois a riqueza é, literalmente, parte do corpo de cada um deles. Tem ainda a devastação natural provocada pelo aquecimento global, causado pelas nações mais desenvolvidos e que, tipicamente, saquearam a África de seus bens.

Esta rapsódia atravessada por Fernando, desde quando amadureceu sexualmente na descoberta do primeiro pelo pubiano até o momento em que abandona o Brasil, quando este mais precisaria dele, evidencia sua ignorância – ao tentar conversar em espanhol com povos lusófonos, sua imaturidade – em como enxergar a genitália feminina, e sua sensibilidade criativa. Até porque o fazer cinema, dentro da lógica da narrativa, é meio capricho e fuga da responsabilidade, meio desejo de refazer as pazes com o passado de uma nação de mentirosos. De certo modo, portanto, a narrativa fantástica, em que o concreto há em forma de alegorias vistas através do olhar contemporâneas em parceria com o imaginário, é também um eficaz discurso metalinguístico, em como a arte é reduzida a uma bijuteria reluzente na orelha da realidade repleta de cicatrizes e feridas abertas.

Mais importante do que escrever roteiros, escalar atores ou apontar a câmera e dirigir a atenção do público é entender aquilo que envolve o que se deseja contar, daí porque Felipe Bragança visita o esqueleto de um antigo resort de luxo em Beira, uma cidade litorânea de Moçambique, e enxerga este opulento signo de riqueza transformado em “Um Forte Apache, um Vaticano, uma Alcatraz”. Tudo isto para, após, compará-lo diretamente com o hotel onde Fernando hospeda-se em Portugal. Este jogo de contrastes é também ilustrativo do legado, não apenas geracional – já que assistimos a Sebastião e depois Fernando a busca de pedras preciosas ou o irresponsável abandono familiar em busca de um sonho, mas meta-narrativo, ao rememorarmos a jornada do protagonista ao que as câmeras captam.

O surpreendente é como esta expressiva colcha de retalhos, costurada através dos tecidos de histórias de antepassados (exploradores, explorados e mesmo brasileiros, que muitos duvidam que possa existir), funciona de modo articulado em torno de uma ideia forte de redescoberta da gênese nacional. Há momento inconvenientes, em que a mensagem política, embora agarrada à arte, queira ressoar mais do que a mensagem narrativa, ou ideias mal resolvidas, em torno de personagens que poderia ser melhor aproveitados: se Sophie Charlote e Thiago Lacerda vêm logo à cabeça, apesar de seus papéis serem meras representações ou simulacro do que vimos antes, é Luiza que gostaria de conhecer melhor. E parece um desperdício que Tainá Medina não possa desenvolvê-la senão como um espelho para que Fernando enxergue quem é.

Com toques pontuais de um terror fantástico e melancólico na figura que acompanha primeiro Sebastião e depois Fernando, “Um Animal Amarelo” ainda conversa com outra produção recente do cinema nacional, “Todos os Mortos”, neste desejo de quitar, através do resgate, uma parte da dívida histórica que temos com os povos africanos, daí porque seus diretores, homens brancos, exibam um desejo conciliatório em suas narrativas.

Pode parecer uma mísera contribuição, não apenas de ordem histórica mas cinematográfica, mas é um passo para sair da bolha, igual faz Fernando, mediado pela linguagem fantástica.

Crítica publicada durante a cobertura do 48º Festival de Gramado.

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