Deve ser muito chato conviver com o detetive e psicólogo Alex Cross: apresentando o seu raciocínio dedutivo por meio de entediantes monólogos em que descobre, inclusive, o que a esposa acabara de beber há poucos minutos, o sujeito posa de sabichão logo na primeira oportunidade que encontra. Além disto, o tom de voz manso e compreensivo e a compostura firme de quem sempre está com a razão apenas aumentam a vontade de socar a sua cara. Ou ao menos foi esta a sensação deixada por Tyler Perry neste fraco produto do gênero policial com serial killer, A Sombra do Inimigo.
Baseado no protagonista dos livros escritos por James Patterson, Alex Cross é uma espécie de Sherlock Holmes afro-americano com leve toque do policial mal-encarado John Shaft. Porém, se antes estas características casavam com a sisudez de Morgan Freeman, que o interpretou em Beijos que Matam e Na Teia da Aranha, agora elas estão a disposição de Tyler Perry, cujo limitado potencial dramático o restringiu a se travestir de mulher negra de meia-idade na série cinematográfica Madea, a qual também escreveu e dirigiu.
Mas se não é tarde para o ator dar uma guinada na sua carreira, não é este policial genérico que o ajudará no intento. Com uma história fraca e que não faz sentido até para os menos exigentes, os roteiristas Marc Moss e Kerry Williamson falham em criar sequer um bom momento que faça jus aos dons intelectuais de Alex Cross que, ao lado do parceiro Tommy (Edward Burns), está no encalço do assassino apelidado de Picasso (Matthew Fox, o Jack de Lost). Dono de um QI inversamente proporcional à sua psicopatia, Picasso parece tapado o bastante de se destacar nos momentos em que deveria tentar passar desapercebido: ele deixa a pista que ajuda a identificar seu próximo alvo, usa uma droga nas vítimas que, de tão incomum, é vendida por um único traficante na cidade e dirige um Cadillac rastreável via satélite. Assim, ele torna irrelevante o esforço dedutivo de Alex, embora curiosamente ninguém utilize o seu DNA para identificá-lo (elemento sugerido brevemente).
Contando com coadjuvantes descartáveis (o chefe de polícia interpretado por John C. McGinley) e outros que só servem para empurrar a história adiante em um ponto-chave (a presidiária Pop), pelo menos o roteiro não faz concessões para retratar a ameaça imposta por Picasso, cujos alvos, facilmente previsíveis, alcançam pessoas próximas do protagonista. E mesmo que as consequências não sejam tão graves quanto deveriam, ao menos elas forçam Alex Cross a sair de sua zona de conforto, levando-o a adotar uma postura imoral, atuante e menos aborrecida do que a do restante da narrativa.
Dirigida com particular incompetência por Rob Cohen, que nunca mais acertou depois dos bons Coração de Dragão, Daylight e Velozes e Furiosos, a narrativa tenta conferir urgência à situação a partir da utilização de uma câmera trêmula, do ritmo agitado existente nos cortes excessivos e da trilha sonora aguda. Porém, afora raros lapsos de qualidade, como a câmera lenta e a mudança de perspectiva durante o tiroteio na cobertura de um prédio, Rob Cohen só consegue realmente ser clichê (o acidente de carro), tolo (o atentado no metrô) ou somente ruim (a incompreensível luta final entre Alex e Picasso). Características que ficam claras nos enquadramentos e movimentos de câmera cujo único propósito é de gritar que há um diretor comandando aquilo, e a sequência na qual Alex recebe uma ligação em plena madrugada é um bom exemplo do virtuosismo inútil do diretor no uso de espelhos.
E o que dizer de Matthew Fox? Esforçando-se para compor um antagonista ameaçador na voz fria e silábica e no olhar vidrado, o ator maltratou o corpo para emagrecer cerca de 20 quilos, o que infelizmente só rendeu uma atuação beirando a caricatura, um tipo parecido com o Chacal (aquele vivido pelo Bruce Willis), remodelado para os tempos do Coringa e prejudicado por um roteiro que o obriga a agir de forma estúpida na maioria das vezes. Mas ele ao menos tenta algo, o que não posso afirmar do restante do elenco, como Edward Burns que só retruca o óbvio e banca de engraçadinho ou Jean Reno trabalhando apenas pelo contracheque.
Sem saber aproveitar o potencial de Alex Cross e sugando dele todo o carisma, A Sombra do Inimigo é uma bobagem que nasceu para preencher grade de programação no sábado a noite, e nem esta tarefa consegue cumprir com sucesso.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
2 comentários em “Crítica | A Sombra do Inimigo”
Um amigo não gostou do filme……porém, elogiou a disposição e o trabalho do protagonista.
Quero assistir, mas, quando sair em dvd.
abs
SEQUEr, um sábado a noite 😉 Incrível como nada desse filme é, bem, crível. hehe