Com uma sensibilidade quase-poética em expor emoções de personagens mais habituados a escondê-las e dono de um apaixonante domínio estético da narrativa, Ang Lee era, a meu ver, o raro exemplo de cineasta que fascinava os olhos e o coração na mesma proporção. Era porque após grandes filmes como O Tigre e o Dragão, Hulk e O Segredo de Brokeback Mountain, o cineasta derrapou no vazio e clichê Aconteceu em Woodstock e ainda não conseguiu se reencontrar neste As Aventuras de Pi, um filme de beleza inegável e uma mensagem espiritual afinada, porém emocionalmente estéril, daqueles cujas experiências e destino da jornada do protagonista não poderiam ser mais irrelevantes.
Escrito por David Magee a partir do livro de Yann Martel, cuja reputação era de ser inadaptável, o roteiro narra a fantástica história de sobrevivência de Piscine Molitor Patel (Suraj Sharma), ou apenas Pi, obrigado a dividir um bote salva-vidas com um tigre de bengala depois que o barco que transportava sua família e os animais do zoológico do seu pai naufragou vítima de uma violenta tempestade. Através do batido mas eficiente recurso de ser relatada em flashback por um Pi já adulto (Irrfan Khan) a um escritor (Rafe Spall), a história é vendida por seu potencial de “fazer acreditar em Deus”, embora esta seja somente uma maneira de ensinar a enxergar os milagres diários da vida, os tais caminhos do carma, e não necessariamente de acreditar na existência de um Ser supremo.
Surpreendentemente antirreligião, ou ao menos insistindo na irrelevância desta para alcançar a espiritualidade, é oportuno destacar que Pi, durante a sua adolescência, migra do hinduísmo ao cristianismo e deste para o islamismo como quem muda de roupa, somente para comprovar que “a fé é uma casa com muitos quartos”. Porém, toda essa ansiosa busca só o leva de volta aos ensinamentos racionais do pai, um ateu casado com uma religiosa e que preferiria discordar das crenças de Pi do que o ver acreditando cegamente nas palavras que lhe são alimentadas, uma lógica marcante que o torna imediatamente o melhor personagem da narrativa.
Estimulando o debate a partir de saudáveis contradições, a narrativa acolhe acertadamente a dúvida como prova de fé. Se Pi não exige do escritor a crença irrestrita no relato contado, ele sempre tenta cativá-lo através do uso de elegantes recursos dos bons contadores de histórias, aparando as ásperas arestas da realidade. Ao reproduzir com precisão a constante matemática que virou o seu apelido, a licença poética do narrador, mesmo que abdique da verossimilhança, serve o relato na bandeja reluzente da fantasia e, portanto, mais palatável. O mesmo ocorre durante a apresentação de Mamaji e o seu porte físico peculiar, noutro exemplo que revela a predisposição do ser humano em preterir a realidade pela ficção, um ataque frontal a religião. Por outro lado, a narrativa ultimamente reconhece a fé como combustível que preserva a exígua esperança do protagonista.
Visualmente espetacular, a fotografia digna de prêmios de Cláudio Miranda confere um ar majestoso à Índia, ao invés do visual miserável com que nos acostumamos em produções como Quem quer ser um Milionário?. Com momentos de indescritível beleza, como o nascer do sol refletido sobre o mar e a presença de peixes tom néon em uma noite escura, o diretor de fotografia também sabe usar os recursos além do apenas belo, como no contraluz de três animais que mascara a brutalidade esperada daquele momento. Já a montagem de Tim Squyres cria transições suaves, como em dissoluções mais do que apropriadas à natureza da provação que Pi encarará.
Mas assim como é bela, a narrativa também é emocionalmente insípida. O esforçado Suraj Sharma, que interpreta Pi na maior parte do tempo, não tem o carisma de um Tom Hanks para carregar o filme sozinho nas costas. Falta-lhe convencer das consequências psicológicas provocadas pelo isolamento em alto-mar ou mesmo físicas, já que só perto do final realmente enxergamos o efeito da exposição ao sol (lábios ressecados, mudança da cor da pele) e da privação alimentar. Algo que não acontece com o tigre, que emagrece diante de nossos olhos e se torna menos agressiva à medida que perde suas forças.
Precisando quase desenhar a explicação do acontecimento central, As Aventuras de Pi propõe uma boa discussão espiritual arrematada com exuberância, exotismo, fantasia mas, infelizmente, sentindo a falta de coração.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
8 comentários em “Crítica | As Aventuras de Pi”
Eu gostei bem mais do filme que você. Pelo visto, concordamos que existe exuberância no filme, mas discordamos quanto a "existência de coração" na obra.
"O Segredo de Brokeback Mountain", e não "O Segredo da Montanha".
Obrigado pela correção e desculpe a desatenção.
Plágio, Plágio, Plágio, Plágio, Plágio, Plágio, Plágio, Plágio….
Refere-se ao livro de Yann Martel?
Esse livro, "Life of Pi", nada mais é que um plágio the obra de 1980 de Moacir Scliar, "Max e Os Felinos"…
Se você é brasileiro e apóia a literatura nacional, NÃO ASSISTA ESSE FILME.
http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=jIQitu5oYWw
Esse mesmo, Márcio, esse livro é um plágio de "Max e os Felinos", lançado em 1980, de Moacir Scliar:
http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=jIQitu5oYWw
Eu assistirei esse filme.