“Um dos deveres juramentados de todo oficial é o de tentar fugir. Se ele não conseguir fugir, então é o seu dever forçar o inimigo a dispor de grande parte de sua tropa para vigiá-los, e também é seu dever importunar o inimigo com o máximo de sua habilidade”. A frase mais emblemática de Fugindo do Inferno, nascida na conversa franca entre o coronel britânico Ramsey e o chefe do acampamento Von Luger da Luftwaffe, a força aérea alemã, resume bem a tentativa de fuga de 250 prisioneiros de guerra anglofônicos de um acampamento nazista no ápice da segunda guerra mundial. Mas havia entre esses homens uma característica em comum: todos tentaram, sem sucesso, cruzar a fronteira que separa a liberdade do encarceramento, e reunir esses “ovos podres em uma mesma cesta” não provocaria nada senão uma nova e maciça tentativa de fuga.
Similar a uma versão de Onze Homens e um Segredo, o de 1960, substituindo um grande roubo por uma grande escapada, o plano dos prisioneiros consiste em distrair o inimigo fingindo estar praticando atividades banais, como organizando um coral de Natal, enquanto cavam túneis em direção ao bosque. No processo, múltiplas tarefas são designadas para cada oficial: Blythe (Donald Pleasence) falsifica os documentos roubados por Hendley (James Garnes), já Sedgwick (James Coburn) desenvolve uma engenhoca imprescindível para ventilar os túneis cavados por Danny (Charles Bronson). Com todos os papéis bem definidos, cabe a Steve McQueen ser o coringa de um grupo bem organizado comandado pelo obstinado Bartlett (Richard Attenborough).
Incomum retrato da mais sangrenta das guerras, alemães e prisioneiros nutrem grande respeito uns pelos outro, um limite ultrapassado só em raras ocasiões como retaliação imediatista. Se assim o diretor John Sturges evita que os nazistas sejam personagens unidimensionais – Von Luger é o maior exemplo, relutando até em fazer a saudação a Hitler -, é inevitável que eles também acabem não representando uma ameaça concreta que faça temer pelo sucesso da missão dos aliados. Mesmo nos momentos em que o segredo é descoberto, os alemães nada podem fazer exceto enviar os transgressores à solitária de onde sairão em matérias de dias, e nem mesmo a punição destinada àqueles, o envio à temida frente russa, surte efeito em aumentar a vigília no acampamento.
Embora cometa esse pecado, há uma intimidade maior com os prisioneiros, todos interpretados com carisma e cujas personalidades são definidas ou em função de seus hábitos (Blythe é um observador de pássaros) ou de características superficiais (Hilts é o esteriótipo do rebelde arrogante e cheio de atitude vivido com a intensidade costumeira de McQueen, já Hendley esbanja charme para conquistar mesmo a simpatia dos inimigos). Mesma com a simplificação e compressão do tempo anunciados nos letreiros iniciais e uma missão que parece resolver-se por si só com pouco ou nenhum contratempo imposto pelo adversário, o envolvimento emocional com os personagens não é abalado e alcança o clímax nos 40 minutos finais quando a narrativa sofre uma mudança de tom radical com o envolvimento da Gestapo e SS, mais rigorosas que a Luftwaffe.
Com uma parcela de equívocos, a narrativa também se beneficia da trilha do lendário Elmer Bernstein que reprisando temas conhecidos de infantaria, encontra um meio termo adequado entre o aventuresco e despojado, e a urgência da guerra. Efeito parecido produz Fugindo do Inferno: agrada com facilidade sem esquecer o terreno acidentado onde está pisando e, aqui e ali, pontua sem a mesma precisão uma das muitas histórias reais que a segunda guerra mundial proporcionou ao cinema.
Esta publicação faz parte do especial do Cinema com Crítica comemorando o aniversário de 50 anos de grandes clássicos do cinema. Na próxima quinzena, Moscou contra 007.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
1 comentário em “50 Anos | Fugindo do Inferno”
Bem bacana. Não conhecia este trabalho. Dentre os filmes do James Garner que vi, ainda não tenho ideia de como seria a atuação dele num roteiro como tal. Vou querer conferir, certamente.
Abraços