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Quilombo

3.5/5

Quilombo

1984

119 minutos

3.5/5

Diretor: Cacá Diegues

Um épico pop preto e brasileiro esquecido pelo tempo.

Muito antes de Wakanda ser imaginada pelos artistas da Marvel Comics, existiu de fato Palmares na Serra da Barriga. Muito antes de “Pantera Negra” do Ryan Coogler chegar às telonas do mundo inteiro, existiu “Quilombo” de Cacá Diegues.

Conheço pouco do cinema do realizador brasileiro, confesso. Nunca assisti à sua obra mais elogiada, “Bye Bye Brasil” (1980). Na verdade, o único dos seus filmes que eu já havia visto antes de assistir a “Quilombo” tinha sido “Deus É Brasileiro” (2003) que considero bem ruim. Mas fiquei encantado com seu épico sobre Palmares, não por ser esta uma obra com um rigor histórico ou uma representação fidedigna dos fatos ocorridos no século XVII – eu não seria nem a melhor pessoa para atestar algo nesse sentido – mas por enxergar em um filme lançado lá em 1984 algo que levou o blockbuster da Marvel a ser amplamente elogiado em 2018: um olhar criativo e respeitoso para com a representação da cultura de raízes africanas no cinema comercial.

Obviamente há de se guardar as devidas proporções. Existem diferenças cronológicas, financeiras e geográficas entre os filmes que os afastam em muitos pontos. Mas não deixa de ser impressionante a escala da obra de Diegues, com suas centenas de figurantes, figurinos bem trabalhados, design de produção pensado nos mínimos detalhes, coreografias, efeitos especiais, etc. Não é exagero comparar as duas produções, que a despeito de todas as diferenças, se aproximam em tema e abordagem.

A começar pela caracterização dos espaços. A Palmares de Diegues, apesar de não ser high tech como Wakanda, também é retratada com um certo ar de utopia. Viva, colorida e frutífera, a cidade/quilombo aparece como uma sociedade organizada e solidária, principalmente em contraste com os espaços ocupados pelos representantes da colônia. As igrejas vazias e rudimentares, as vilas cinzas e sem vida. Tudo aponta para uma existência mais plena e interessante no alto da serra do que nos salões da capital Recife. Enquanto o ouro e os jogos de poder ditam as relações entre os brancos, a honra e a solidariedade aparecem como características da sociedade de Palmares. Algo que se repete com a caracterização dos personagens. Quase todos os brancos são retratados com um viés meio ridículo, como se fossem um bando de patetas, ainda que capazes de cometer violências com crueldade.

Contudo, há algo em “Quilombo” de muito brasileiro, algo de um cinema pop tropical, que absorve essa necessidade de construção épica bem típica do cinema americano, mas que a adapta a uma linguagem brasileira, bebendo da fonte dos cinemas que aqui se originaram. Por exemplo, enquanto os épicos clássicos costumam acompanhar a jornada de um personagem heroico, Diegues se propõe a digressões narrativas. Paralelamente à trama principal existem pequenos momentos, fragmentos de história, esquetes, que vão compondo um mosaico rico de personagens, elementos religiosos, momentos cômicos com participação de grandes artistas como Grande Otelo. É um filme que se deixa atravessar por essas possibilidades. Mais do que Ganga Zumba (Tony Tornado) ou Zumbi (Antonio Pompeu), o protagonista é verdadeiramente o Quilombo dos Palmares.

Há algo mais interessante ainda no longa, que é a sua dimensão metafísica. A religiosidade de tradição do Candomblé é presente ao longo de toda a narrativa. Tudo o que ocorre no mundo físico do filme, tem repercussões metafísicas e vice e versa. São duas tramas correndo em paralelo, a material e a transcendente. Os Orixás são personagens presentes e influentes para o desenrolar da trama. Isso fica claro em pequenos (e grandes) detalhes, desde as cores das vestimentas dos habitantes de Palmares que mudam conforme a liderança da cidade, a iluminação que responde à mesma lógica, ou que pontua os embates entre personagens filhos de santos distintos, até a presença física de Xangô em batalha, como se estivesse incorporado em Ganga Zumba, em uma cena bem coreografada. Poucos são os filmes que constroem e integram tão bem essa camada transcendente à lógica de encenação.

Sinto que “Quilombo” é uma obra subestimada na filmografia brasileira. A abordagem carnavalesca que Cacá Diegues confere ao filme talvez o afaste de parte da intelectualidade, mas gera como consequência um potencial popular muito forte, além de refletir dinâmicas narrativas bastante próprias do cinema nacional que teve seu auge comercial com as chanchadas e pornochanchadas. É um trabalho bem mais brasileiro do que muitos filmes da retomada, que são cultuados como sintoma da pouca memória que o brasileiro tem em relação ao seu próprio cinema. Some-se a isso uma trilha sonora incrível, composta e interpretada por Gilberto Gil e a um elenco com vários dos maiores atores pretos que esse país já produziu e se tem um arrasa-quarteirões nacional, que certamente não atingiu um sucesso condizente com o seu potencial.

Filme assistido na 18ª CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto.

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