Inspirado nos faroestes espaguete (ou spaghetti, se preferir) de Sergio Corbucci e Sergio Leone, Django (Jamie Foxx) é um ex-escravo libertado dos grilhões pelo caçador de recompensas Dr. King Schultz (Christoph Waltz). Juntos, eles formam uma parceria para “matar brancos” foras-da-lei e enriquecer enquanto esperam o fim do inverno para descobrir o paradeiro de Brunhilda (Kerry Washington), a esposa de Django, vendida para o extravagante e rico Calvin Cadie (Leonardo DiCaprio), grande proprietário no racista estado do Mississipi. Partindo dessa simples premissa, Tarantino evita aprofundar-se na subtrama escravagista – e o faz bem, já que seria tolice repisar o óbvio – e explora apenas os extremos da subserviência e crueldade humana que motivam a dupla central a buscar justiça e vingança, termos intencionalmente confundidos na filmografia do cineasta.
Mas a verdade é que tudo isso é desculpa para Tarantino massagear o seu ego cinéfilo revivendo a sensação de um autêntico espaguete da década de 60, com direito a desajeitados zooms no meio da ação, um herói frio pautado no silêncio (apesar de seu companheiro Schultz ser um personagem naturalmente Tarantiano) e uma fotografia característica, inclusive na presença frequente de flares (observe as velas). Tudo isso vem com a marca registrada do cineasta: o humor negro caustico, o timing cômico sobretudo na precisa inserção de um flashback momentos antes do ataque de mascarados e mesmo os diálogos autoindulgentes e por vezes extensos demais vêm em doses mais palatáveis. Já a violência, de tão exagerada com vísceras dilaceradas e sangue espirrando a cada disparo, termina anestesiando o espectador diante da carnificina que testemunha.
O que nos leva ao mais grave problema da narrativa: não existe um oponente digno dos esforços de Django e Schultz. Parece fácil derrubar uma dezena de adversários sem errar um único tiro, e mesmo que isso acrescente algo mais à aura mítica e cool (detesto essa palavra) de Django, a verdade é que é só uma questão de tempo até vê-lo resgatar a sua amada (e a título de comparação, A Noiva de Kill Bill comia o pão que o diabo amassou e enfrentava adversários que realmente punham em risco a sua vida). Ao mesmo tempo, a propriedade Candyland falha em transmitir a imponência que deveria, resumindo-se a uma mansão onde se isola o capacho de Candie, Stephen (Samuel L. Jackson, mais insuportável do que nunca). Nem os cruéis momentos de exploitation, e Tarantino os adora, são suficientes para fazer desse um cenário propício ao confronto final que surge como um anti-clímax.
Despersonalizado até restarem 30-40 minutos, Jamie Foxx restringe-se a um olhar desafiador e a mão inquieta prestes a alcançar a arma no coldre e descarregar disparos secos que dizem mais a seu respeito do que os flashbacks usados por Tarantino. Eclipsado por Leonardo DiCaprio, que como o exagerado e mimado vilão oferece uma atuação menos complexa do que o habitual, Django também desaparece sob o brilho de Christoph Waltz (indicado ao Oscar de melhor ator coadjuvante) no papel de um caçador de recompensas divertidamente preso à lei e obcecado por recibos, porém fiel ao destino do comparsa, por quem ele sente-se responsável.
O mais extenso entre os filmes do diretor, as 2 horas e 45 minutos de duração apenas oferecem provas irrefutáveis do fascínio que o cineasta provoca em si mesmo, levando-o a introduzir redundantes momentos em que um personagem repete uma mesma história já vista a outro personagem, e mesmo a uma inútil participação especial que poderia ser excluída sem prejuízo da narrativa.
Compensando alguns defeitos com uma ótima trilha sonora, metade clássica metade contemporânea, Django Livre é a aposta cega de cinéfilos desde o início obrigados a gostar de um trabalho não pelos talentos envolvidos e méritos artísticos, mas apenas porque tem o nome Tarantino estampado bem grande no cartaz. Para muitos, isso tem bastado.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
7 comentários em “Crítica | Django Livre”
Concordo em partes e discordo em partes com sua visão. Até entendo que o filme é um massagem no ego de Tarantino, mas em minha visão é isso que motiva um cineasta que busca sair do padrão comercial.
Outro ponto que discordo é sobre a violência. Não acredito que ela seja tão exagerada…..é apenas um ponto da obra, em meu ponto de vista. com vísceras dilaceradas e sangue espirrando a cada disparo,
Concordo quando diz que os protagonistas não possuem um oponente a altura. Apesar de ver DiCaprio em boa atuação acredito que o resto de seus adversários não possuem 1/3 da força que deveriam.
E viva o charme do cinema e de seus diálogos a favor e contra.
abraços
Discordo em vários fatores, não se pode levar a sério a história, todo Tarantino's movie pós Kill Bill foge do bom senso. Acho que a técnica de cinema mesmo evoluiu muito, vide fotografia, trilha sonora, antes era tudo bem cru, não que eu desaprove o passado dele, mas acho que ele amadureceu como diretor nesses 2 últimos trabalhos criando algo seu e mesmo assim utilizando de todos os artifícios pra fazer um bom filme, tecnicamente e comercialmente. Django segue uma linha de narração que oferece uma visão bem-humorada da época sem assumir nenhuma postura politica e/ou ideológica apostando apenas no humor negro e nas atuações a beira da caricatura, concordo que o final é previsível e os vilões pouco fazem para evitar, mas a graça é se deliciar com tudo que acontece até o ápice. Bom, pra mim é isso. Gostei e não é por ser Tarantino, mas por ser um ótimo filme, sem necessidade (pra mim) de nomes e/ou rótulos, sim, de talento.
Obrigado pelo comentário, Marcos.
Não assumir nenhuma postura política ou ideológica foi acertado (comentei isso), o humor negro e as atuações em geral também estão boas (também comentei isso), mas o que não gosto é que o filme apoie-se só no estilo quando é muito melhor se estiver de mãos dadas com uma boa história.
Obrigado pela participação, Renato.
Meu problema nem é exatamente o excesso de vísceras e sangue – Kill Bill tinha aos montes – mas como ele anestesia o espectador acerca do destino dos personagens. Falta um senso de ameaça pra Django que, exceto uma única vez, não tem a vida em risco.
Abraços
O excesso de violência de fato acabou enjoando a partir de um momento… e confesso que achei aquela sequência final bem pouco inspirada e previsível.
A participação do Tarantino aqui foi péssima, até me distraiu um pouco da história… realmente não precisava.
De qualquer forma, me diverti na maior parte do tempo com o humor tarantinesco e também com as referências que pude reconhecer.
Apesar da essência da história de Django Livre ser simplista, não dá pra dizer que isso é uma tendência do diretor, afinal Bastardos Inglórios é um excelente exemplo de uma trama bem amarrada, com reviravoltas, diálogos muito bem escritos e até emoção.
Daria 4 estrelas pra Django!
Ótimo, Márcio. Apesar de Jackson (que gostei), temos o mesmo pensamento. Um dos trabalhos mais desajeitados do Tarantino, de longe. E fico surpreso de ver críticos o celebrando por ser um filme de… Tarantino. Incrível. Como se o seu estilo ofuscasse as vulnerabilidades do longa-metragem. Depois falam de Spielberg.
Geralmente gosto de criticas suas, mas essa confesso que nao gostei muito, nao. Mas eh isso, ne…ninguem eh igual. Eu achei Django Livre uma obra-prima, nao por ser dele, ate porque eu ficava pensando o que ele tinha tanto para algumas pessoas ja o considerarem como o melhor diretor de todos, ate pq ele fez poucos filmes! Filme faroeste-drama-comedia-açao-romance-aventura…enfim…muitas referencias que eu achei interessante..aquilo do KKK foi sensacional!
Ah…Samuel L. Jackson estava impagavel! Vc levou o que considera do ator para o personagem…ele era para ser aquilo ali, mesmo, pow…ironico, que gostava de satirizar, preconceituoso com a etnia dele, mesmo, "baba ovo" do seu senhor…enfim…Di Caprio o personagem eh realmente exagerado, mas tambem era para ser caricato…algumas vezes muito, sim, realmente..mas achei um otimo papel dele!
Abraço
Maurício Andrade