Horas antes da divulgação dos indicados ao Oscar, um caso alarmante tomou conta do Twitter quando mensagens pululavam na linha do tempo torcendo contra Tom Hooper, vencedor do prêmio por O Discurso do Rei. A prece destes ditos cinéfilos, inclusive jornalistas e críticos de portais respeitados, foi atendida e consigo escutar os gritos de satisfação e as batidas no teclado em comemoração depois que o diretor ficou de fora da lista final. Um detalhe, porém, omiti propositadamente: 90% sequer havia assistido à adaptação musical do clássico de Victor Hugo Os Miseráveis. Mas ainda que assuste o comportamento cada dia mais comum, combinando expectativa e preconceito, pior mesmo é constatar que, embora tendo agido erroneamente, todos acabaram tendo razão e por muito pouco Tom Hooper não arruinou uma das histórias essenciais da literatura.
Adaptado dezenas de vezes em mídias distintas, o roteiro escrito a oito mãos transpõe o musical do teatro à tela do cinema, sem contudo explorar a fundo o potencial da linguagem cinematográfica (Moulin Rouge fez isso com louvor ao retomar os grandes musicais). A conhecida história toma por pano de fundo a revolução francesa e parte do conflito entre o ex-prisioneiro Jean Valjean (Hugh Jackman), condenado a 19 anos de trabalhos forçados após roubar um pão, e Javert (Russel Crowe), inspetor obstinado em impor a lei e também provar a falência do sistema prisional, no aviso sádico e satisfeito feito àquele de que ele nunca mais teria a sua vida de volta. Dito e feito, incapaz de encontrar um emprego graças à condição de ex-preso (a sociedade não mudou em nada), Valjean assume uma nova identidade e prospera como prefeito até Javert novamente o encontrar. Antes de fugir, porém, Valjean promete à prostituta Fantine (Anne Hathaway) tomar conta de sua filha Cosette (Amanda Seyfried, na idade adulta), resgatando-a das mãos dos Thénardier (Sacha Baron Cohen e Helena Bonham Carter).
Partindo de uma Paris nada glamorosa, suja e decadente, a narrativa substitui na íntegra diálogos por canções, capturando-as em ação em vez de gravá-las posteriormente no conforto de um estúdio. E embora não seja uma decisão inovadora, deve-se aplaudir a ousadia da produção em face da escala épica e extensa duração. Uma pena portanto que Tom Hooper não entenda nada de musicais, insistindo em uma abordagem enfadonha e limitada a planos bem fechados dos atores cantando em direção à câmera em apresentações solo ou então mantendo diálogos cantados com outro personagem. De certa maneira valorizando as atuações, já que toda a atenção é dedicada a quem está cantando, Hooper não aproveita os excepcionais cenários criados pela direção de arte, como o grande elefante situado no meio da praça, exibindo-os de relance para descartá-los depois. Aliás, é interessante que ele se preocupe tanto em estabelecer o paralelo óbvio de Javert e um gárgula em forma de águia ou faça um close de uma bandeira francesa empapada de lama, e esqueça de explorar a mansão dos Thénardier, cheia de pequenos objetos, certamente furtados, que não fazem sentido em conjunto e remetem a um divertido circo dos horrores.
Indisciplinado, Tom Hooper parece obcecado por planos inclinados, grandes angulares que distorcem o quadro (apenas funcionando, suponho que acidentalmente, na cena que evoca o terror vivido por Fantine) e movimentos inusitados da câmera, se bem que neste departamento, ele proporciona uma cena simplesmente genial que culmina na visão da chegada dos soldados franceses para combater os revolucionários. E se em O Discurso do Rei, a composição de quadro que situava Albert, o rei gago, inferiorizado no canto esquerdo fazia sentido, aqui existe um enorme e insistente vazio deixado pelo diretor sem razão aparente (como quase tudo que ele faz), já que a história de Victor Hugo sequer trabalha este tema, concentrando-se nos valores representados pelas cores da bandeira francesa (igualdade, fraternidade e liberdade) e a dicotomia justiça e lei, definições filosoficamente distintas, personificadas por fortes personagens centrais.
Mas é o próprio conceito do musical o maior problema da narrativa. Há canções belíssimas e bem interpretadas: emocionei-me ao ouvir Anne Hathaway tornando-se a favorita ao Oscar com I Dreamed a Dream, cuja melodia é retomada posteriormente em momentos oportunos; surpreendi-me com a participação devastadora de Samantha Barks em On My Own, e ela também mereceria ser lembrada para prêmios; e arrepiou assistir a todo o elenco na montagem de One Day More. A questão é que, apesar de memoráveis, um conceito obrigatório em musicais, as canções pouco empurram a história adiante limitando-se somente a refletir o estado de espírito de um personagem ou a servir como uma espécie de desabafo por tudo o que vem sentindo. Não é a toa que mesmo com mais de 2 horas e meia de duração, certas passagens do livro (se você não o leu, faça agora) soam apressadas, sacrificando inclusive a perseguição de Javert por Valjean e a mudança de perspectiva definitiva daquele.
Felizmente, a narrativa é ancorada por intérpretes carismáticos cuja sensibilidade e empenho ajudam a passar por cima dos seus parcos atributos musicais (refiro-me sobretudo a Russel Crowe e Eddie Redmayne). Primeiro Hugh Jackman, que entregue totalmente à caracterização de Jean Valjean, revela um crescente complexo de perseguição que nem a sua riqueza é capaz de apagar. Já Anne Hathaway, a melhora cantora do elenco, explora até o fim a piedade do espectador com o sofrimento e miserabilidade de sua personagem (o detalhe de um dente coberto de sangue na sua boca é um preciosismo decisivo). Há também Amanda Seyfried, Helena Bonham Carter e Sacha Baron Cohen, que já haviam participado de outros musicais, e a trágica Éponine, vivida com uma força emocional descomunal por Samantha Barks.
Graças a todos eles, Os Miseráveis não é um desperdício completo; mas que Tom Hooper tem um talento particular em arruinar uma grande história, ah, isso ele tem aos montes!
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
4 comentários em “Crítica | Os Miseráveis”
Muito bom o texto…só uma coisa, Os miseráveis passa após a Revolução Francesa, o cenário de fundo são as barricadas contra o Rei Luís Felipe as insurreições de 1832…
Quanto ódio pelo Tom Hooper, Márcio. Eu tenho uma queda pela direção de atores dele. Mesmo. E acho que escolhe suas narrativas sempre para evidenciar os personagens. Seus trabalhos televisivos beiram ao sublime. O problema aqui foi que ele parecia completamente perdido no que fazer. Bem, achei Os Miseráveis belíssimo e conta com um elenco fantástico (Jackman e Hathaway, principalmente). E falamos de sua "ignorância" (não acho tanta) literária, mas nunca li a obra. Triste.
Abração.
Depois de ler Os Miseráveis não tem como ele não se tornar um dos livros mais importantes que você vai ler na vida, e por isso eu estava com muita expectativa sobre o filme.
Pois bem, assisti ao filme na segunda mesmo após ter lido tanta coisa ruim e me surpreendi. Mesmo. Acho que realmente o foco não pode ser a qualidade vocal dos atores…eles são atores…mas achei que funcionou a ousadia do Tom Hooper. Não há como se fazer um filme tão perfeito quanto o livro, então existem duas opções: 1) não fazer; 2) ousar.
Ele fez uma adaptação belíssima…claro que bem resumido (como retratar 1200 páginas em 3 horas sem resumir?)e acho uma pena que a maioria das pessoas não tenha lido o livro e que então não conheça, por exemplo, o drama de Marius, que julga ter sido Thenardier o salvador do seu pai e se vê entre a promessa de uma vida inteira e a realidade de que ele não tem caráter algum. Foi rápido, foi impossível de ser muito detalhista ou profundo, mas acho que alcançou o que se buscou. É cheio de emoção e mostra um jeito diferente de fazer musicais (eu particularmente não sou grande fã de músicas que interrompem a história a toda hora para que os personagens façam coreografias – ok se for o Gene Kelly, mas quase nunca é).
o filme não foi adaptação do livro, mas sim da peça