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Fale Comigo

4/5

Talk to Me

95 minutos

4/5

Diretor: Danny Philippou, Michael Philippou

Contém spoilers!

Com frequência cada vez maior a ponto de namorar a condição de clichê, o medo e/ou o sobrenatural tornaram-se terapias alternativas com que os personagens do cinema de terror superam os traumas que acreditam definirem-nos. A depressão, o estresse pós-traumático ou o luto são dores visibilizadas através do monstruoso fantástico. Neste sentido, a perda de um ente querido é o gatilho emocional de Fale Comigo. Ainda que o terror australiano busque vivenciar os horrores de modo direto ou frontal, esses não escapam da componente metafórica que os acompanha ou os possui. O terror deixa de ser o fim ou, pelo menos, permanece no banco de passageiros, enquanto assiste ao drama do protagonista desenrolar-se. Nos melhores momentos, é possível apreciar a forma e o drama, tipo o que acontece com esse terror australiano.

O roteiro trata de Mia (Sophie Wilde), que acredita que a mãe morreu de suicídio acidental por ingestão de medicamentos. Sua relação com o pai deteriorou, e Mia apenas encontra conforto na amizade de Jade (Alexandra Jensen), cuja família a acolheu de braços abertos. Certa noite, os colegas de sua turma organizam uma festa típica de jovens em filmes de terror. Contudo, eles substituíram o tradicional tabuleiro ouija por um artefato: uma mão embalsamada que permite não só conjurar espíritos, como ser temporariamente possuído por eles. Há regras mal explicadas: uma vela deve ser acesa antes e apagada ao fim, a possessão não pode ultrapassar 90 segundos. Caso contrário, há risco de o espírito se apossar do hospedeiro. É exatamente o que acontece com Mia, agora aterrorizada por espíritos que pairam nas sombras, pela culpa e pela memória da mãe. 

O terror de geração Z

Até mais geração Z do que Morte Morte Morte, Fale Comigo explora angústias da juventude sem didatismo excessivo. Em vez de experimentarem álcool, maconha ou drogas sintéticas ou explorarem a sua sexualidade – igual faziam os jovens contemporâneos de Sue (Miranda Otto) -, a juventude Z ocupa o tempo e o vazio existencial com o estranho barato de ser possuído por espíritos. No processo, perdem temporariamente o controle do corpo, não muito diferente do que entorpecentes fazem.

Nesse contexto, não há risco de Jade perder a sua virgindade para Daniel (Otis Dhanji), pois ele sequer a beijou e nem parece ter pressa. Ninguém deseja manter em sigilo suas transgressões, mas registrá-las e as eternizar nas redes sociais, através do olhar e imaginário individual. Antes contávamos histórias de terror ao redor da fogueira. Agora, os jovens vivem, de um jeito que denuncia seu niilismo. Não sei o que me assustou, se a figura cadavérica e aberrante dos espíritos ou se jovens friamente combinarem depoimentos com a polícia.

Ou a aversão ao contato humano dessa geração, substituída pela aproximação patológica com os dispositivos tecnológicos – as extensões de seus corpos. Cada tentativa de contato é repelida, e isso dialoga com o que ‘aciona’ as possessões: o toque na mão e a pronúncia de fale comigo. A juventude da narrativa prefere tocar no sobrenatural do que no natural. Ela prefere confidenciar em espíritos (ou avatares nas redes sociais) do que com amigos e familiares. A ausência de diálogo com o pai acentua o trauma de Mia. Ela prefere consumir as mentiras que mascaram a dor, do que as verdades que machucam. Estas são o passo inicial para o início de cura do luto. O roteiro de Bill Hinzman conjura essa temática, sem que a direção dos irmãos estreantes em longas-metragens Danny e Michael Philippou vacile.

O terror que discute o trauma

O trio certamente inspira-se em A Morte do Demônio em como os espíritos pinçam a dor mais escondida de cada um e a explora para torturar as almas de seus hospedeiros, e como isto é materializado na carne. Riley (Joe Bird), irmão de Jade, é a vítima da violência autoinfligida que expõe a malignidade e o sadismo dos espíritos que o possuem. Não posso ignorar a relação com a prática de automutilação, ligada ao desejo de sentir qualquer coisa que não a existência dormente, anestesiada e despropositada do mundo de hoje.

A leitura pessimista é adequada ao arco dramático de Mia. Fale Comigo não é mais – ou não é apenas – sobre como o terror e o sofrimento de terceiros inocentes ajudam a protagonista a elaborar o trauma que a consome. Antes, está preocupado em revelar os obstáculos que a protagonista coloca para evitar puxar o band-aid, lidar de frente (frontalmente) com o luto e aceitar que a mãe não morreu acidentalmente, mas tirou a própria vida.

Apesar da direção ser ingênua, às vezes, ao explicitar visualmente o que já era óbvio de se notar (p. ex. o reaparecimento do canguru moribundo na estrada no terceiro ato), é também madura em plantar uma dúvida com o desfecho e não a responder, obrigando o público a se questionar quem é o autor da ação que provocou o acidente na estrada. Com uma atuação estelar e contraditória igual a de Sophie Wilde, que me fez abraçá-la e repeli-la com idêntica intensidade, às vezes na mesma cena, Fale Comigo serve ao que a protagonista realizou a narrativa inteira. Recorre à metáfora, ao desconhecido, para evitar lidar com a frontalidade do horror, o conhecido, embalado em um conto de alerta e um pedido para restabelecermos o contato que, em algum momento, perdemos.

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