Durante a ocupação da Coreia do Sul pelo Japão, Sook-hee (Tae-ri) é contrada para ser a criada da Hideko (Min-hee), que habita na reclusa e opulenta mansão – rima com prisão – do seu tio, Kouzuki (Jin-woong), que divide com o Conde Fujiwara (Jung-woo) o mesmo interessa em desposá-la para herdar a fortuna deixada por sua mãe. Se eu prosseguir na sinopse, arrisco a entregar spoilers relevantes da trama co-escrita e dirigida por Park Chan-wook (de Oldboy e Stoker), que transporta o cenário do livro Fingersmith, escrito por Sarah Waters, da inglaterra vitoriana para a Coreia do Sul pré-segunda guerra mundial.
Uma mudança de ares mimetizada no design de produção de Ryu Seong-hie, inspirado naquele conjunto de atributos tradicionalmente associados às produções de época vitorianas: o refinamento, aqui presente nos cômodos da mansão onde grande parte da ação acontece, mas também nas áreas externas e bucólicas, o preciosismo dos objetos cenográficos e o trabalho de figurinos que aqui ajudam a dissociar serventes de ‘serpentes’ (não resisti ao trocadilho, que você entenderá o significado quando assistir ao filme). É a espécie de trabalho técnico que encanta: não apenas limitado a ser competente do ponto de vista do ofício, mas que auxilia a narrativa ao criar a ambientação propícia para discutir o tema central: a repressão feminina diante da opressão masculina.
Para tanto, Park Chan-wook substitui a violência nua, crua e explícita, característica dos trabalhos anteriores (exceto Stoker, comedido em comparação), pelo erotismo, ora inferido nas leituras de Hideko – comparar o conteúdo destas aos textos escritos de Marquês de Sade não é exagero -, ora explícito em sequências gráficas e extensas, nenhuma das quais é gratuita nem tampouco apelativa, mas imprescindíveis para o deslinde da trama. Esta é subdividida em três partes, cada qual com a responsabilidade de ilustrar a perspectiva de certo personagem, mas diferente de Rashomon, pois, se no clássico de Akira Kurosawa a intenção do cineasta era constatar que não existia Verdade absoluta e sim versões dela, aqui o objetivo é de fato desnudá-la, acrescentando as peças faltantes no quebra-cabeças e, com isto, desafiar o entendimento do espectador, movido por pré-julgamentos antes feitos com uma visão parcial da Verdade.
É uma proposta que o primeiro flashback deixa evidente quando revela as intenções iniciais de Sook-hee ou então porque tanto desapego das mães coreanas de seus bebês – verdadeira commodities das ricas famílias japonesas. A título de comparação, pense na forma com que Garota Exemplar subvertia a percepção do espectador e multiplique por três. Desta maneira, o segundo close-up de Sook-hee com a boca entreaberta e olhos cerrados desfaz o significado do anterior, e neste mesmo caminho determinadas cenas revelam facetas angulosas que antes não imaginávamos ter, e assim como Sook-hee aparenta ser ingênua, à medida que a conhecemos enxergamos traços de malícia bem camuflados.
A trama de A Criada é tão fascinante por seu conteúdo e intrigante mistura de enfoques do thriller (erótico, criminal e romântico) quanto a narrativa é por sua estrutura e reviravoltas – cuidadosamente introduzidas para não apresentar furos de lógica, especialmente na construção dos personagens -, e esta, sustenta-se na fotografia de Chung Chung-hoon, colaborador habitual de Park Chan-wook: a iluminação agasalha as cenas noturnas com o tom acinzentado simbolizando o espírito, metafórico, da mãe falecida de Hideko, enquanto não há movimento ou enquadramento de câmera despropositado, mas meticulosamente pensados pelo cineasta e diretor de fotografia para trazer um significado, como quando Fugiwara, durante um passeio de barco, pende entre o lado esquerdo e direito da tela.
Enfim, o trabalho do elenco é competentíssimo: Jo Jin-woong, seja através da língua preta, seja do olhar lascívio, ilustra, propositadamente exagerado, o comportamento sexista do personagem, ao passo que Ha Jung-woo dá vida ao típico cafageste galanteador e interessador. Já o elenco feminino é suavamente sedutor e intrigante: e enquanto Kim Tae-ri dissimula, no rosto angelical, suas intenções egoísticas e desejos carnais, Kim Min-hee é a melhor do elenco ao conceber Hideko como uma personagem enigmática, cujos sentimentos enterrados debaixo de anos de submissão à tara do tio, tornam-na imprevisível ainda quando age dentro dos estritos limites de liberdade a que é submetida.
O melhor trabalho de Park Chan-wook depois da obra-prima Oldboy, A Criada deleita os olhos na questão puramente estética e visual e joga com o espectador com uma trama sinuosa, de múltiplas camadas, personagens complexos e temas idem, que, porém, desaguam nos desejos mais naturais do ser humano: amor e liberdade, preferencialmente conjugados.
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Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.