Existe um quê de Carrie, A Estranha, na personagem-título de Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois, não apenas por causa da cena que estampa o cartaz nacional da produção lançada no Festival do Rio de 2015, porém sobretudo por causa de sentimentos reprimidos prestes a irromper dos poros da introspectiva Clarisse (Greve), a quem nós somos apresentados enquanto permite que o marido Joseph (Wendefilm) a estupre. Reprimida e calejada de maneiras que o espectador apenas poderá supor, Clarisse viaja ao interior do Ceará, à pedreira da família, onde reencontrará o pai (Pontes).
Co-roteirizado, dirigido, co-montado e fotografado competentemente por Petrus Cariry (de Mãe e Filha e O Grão) este terror psicológico investe na atmosfera sepulcral do interior cearense com o objetivo de estabelecer a paranoia crescente de questionar se o que estamos vendo é real ou somente o fragmento da psiquê perturbada de Clarisse. É o ambiente perfeito para indagar sobre a própria sanidade como Frederico Machado mostrou em O Exercício do Caos, com o qual este filme divide semelhanças: o marasmo de dias extensos e indiferentes que parecem intermináveis, a persistente escuridão, o silêncio interrompido somente pelo barulho dos vagalumes ou pelo som mudo da mata ou por barulhos imaginários e, sobretudo, a oportunidade para que o espectador interprete os signos e desvende, com base no próprio juízo, o deslinde de um roteiro que evita expor demais.
Pelo contrário, existe poesia no não-dito: quando Samuel pergunta à filha se ela o havia esquecido, a resposta vaga “Impossível esquecer o Senhor”, além de carregar consigo o tratamento exigido e dispensado pela geração passada, traz consigo um caminhão de ressentimentos – jamais havia me atentado para o significado etmológico dessa palavra, qual seja, sentir de novo ou, conforme o exemplo da protagonista, sofrer novamente -, salientados pelo fato de que, depois da morta da mãe, o pai descartou a filha, enviando-a para estudar na Europa. Ou melhor, o que seria impossível esquecer se ela sequer conviveu com ele suficientemente para enxergar a figura paterna? Uma questão que despertou agora mesmo enquanto escrevo este texto, situação corriqueira resultante de obras que sonegam respostas fáceis ao espectador.
E Clarisse está repleto de elementos prontos para serem debatidos: se a pedreira onde estamos representa a tentativa de penetrar no íntimo da protagonista que desenvolveu um invólucro emocional rijo, o prazer de Samuel pela taxidermia – herdado pela neta, evidenciado quando esta apresenta ao pai o cadáver de um gafanhoto – na tentativa vã de conservar a aparência de seres mortos. Adiante, após dificilmente sair da banheira, as costas de Samuel estão cobertas por folhas mortas iguais aquelas na superfície da piscina imunda em direção a qual sua filha encara com olhar distante. Somado a tudo isto, a atemporalidade perturbadora da narrativa, insinuada pelo fato de que Clarisse permanece com o mesmíssimo vestido laranja com que chegou.
Lógico que crie uma teoria, e preciso alertá-los dos spoilers a partir de agora (pule para o parágrafo final para desviar deles): e se Clarisse não veio visitar o pai, mas enterrá-lo depois de sua morte, o que explica a urgência no pedido feito, no café da manhã, por Joseph, administrador da pedreira e visto como filho por Samuel? A sequência de eventos iniciada na banheira, continuada durante a caminhada no mato, quando a filha carrega o pai, moribundo, sobre suas costas, e encerrada na entrega do seu corpo às águas parece-me retratar o único propósito deste expurgo espiritual dos fantasmas do passado. A propósito, as sequências mais esclarecedoras do passado da família são aquelas havidas com a governanta, Caetana (Cavalcanti), ao revelar a reação logo após a morte da mãe e posteriormente indagar, com a retórica que há na prosa, “O que dizer do rosto que se encontrava nas trevas?”. E não vamos nos esquecer do figurino ou dos diálogos aparentemente vazios havidos entre Samuel e Clarissa, que podem satisfatoriamente serem objeto da própria imaginação.
Ciente de que o poder da sugestão da caixa de Pandora é mais forte do que o conteúdo dela, Petrus Cariry estabelece a narrativa nos passos cautelosos de Clarisse antes do reencontro com o passado, ressaltado pelo efeito pertubador da edição de som, e especialmente pela reação que provoca na protagonista na intensa e catártica cena final, um desfecho libertador tal como o da anti-heroína em que ela se inspirou.
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Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.