Logo nos primeiros minutos de Planeta dos Macacos: A Guerra, dezenas de soldados infiltram-se silenciosamente na mata densa onde estão escondidos e abrigados os macacos liderados por César. Escritos nos capacetes, dizeres como matador de macacos, facilmente substituível por matador de vietcong, e mesmo a sonoridade da palavra remete a kong, que é a forma pejorativa com que são apelidados os símios pelos homens do Coronel interpretado por Woody Harrelson, uma versão do mítico Kurtz de Apocalipse Now. A narrativa, a propósito, explicita sua inspiração nesse clássico do cinema para evidenciar que o confronto entre humanos e macacos namora não somente com as causas torpes e sórdidas da Guerra do Vietnã, mas sobretudo com suas consequências desastrosas.
A bem da verdade, não haveria ponto de partida mais oportuno para o episódio de encerramento da trilogia iniciada em 2011, que se propôs a discutir a dicotomia entre humanidade e bestialidade e que encontra na guerra o indício principal de que falimos como espécie. De um lado os Homens, a princípio inteligentes, ousados e arrogantes em subverterem a ordem natural da evolução ou, quem sabe, apenas sendo as ferramentas para esta executar seu plano, entregues à ingratidão, à violência, à escravidão e à carnificina; do outro, Macacos, que desejam dos opressores a paz para construírem a sua sociedade, inclinados à compaixão, à pluralidade e à bondade. A série, inteligentemente, veio afastando o Homem do protagonismo – primeiro o idealista James Franco, depois, o desconfiado e bondoso Jason Clarke até chegarmos ao monstruoso Woody Harrelson, um combo do que há de pior em nosso meio – até entrega-lo a César, um dos melhores personagens criados nesta década, assim enfatizando a humanização dos símios e a bestialização humana.
Com roteiro escrito por Mark Bomback e Matt Reeves, que retorna à direção após o excelente O Confronto, a trama inicia no ataque ao acampamento símio com perdas imensuráveis para César e o desejo deste por vingança, aproximando-se perigosamente da amargura e do ódio de Koba com a mesma intensidade com que rejeita estes sentimentos. Acompanhado por Maurice, Luca e Rocket, César atravessa o que restou dos Estados Unidos, após a gripe símia dizimar parte da humanidade, em busca da fortaleza atrás da qual se entrincheirou o personagem vivido por Woody Harrelson.
A simplicidade dessa premissa não mascara a ambição do roteiro, presente não somente no esforço em inserir e harmonizar menções à Guerra Civil Americana (p. ex., o exército do norte versus o escravagista sul) ou à da Palestina, mas sobretudo ao elevar César à imagem de Moisés, criando, então, um subtítulo religioso que permeia toda a narrativa – o que, em vez de contrastar com a cientificidade da evolução das espécies, concilia-se com esta -, desde a aura mítica e tirânica ao redor do Coronel McCullough, também inspirado em Ramsés, até o sintoma que tem acometido mais e mais humanos, na forma de, por que não, uma praga divina que contrasta com a fala cada vez mais articulada e postada de César.
Diferente do que se propõem os blockbusters dos grandes estúdios, a narrativa substitui aventura e set-pieces pela introspecção e reflexão, efeitos sonoros pela construção inteligente do silêncio, e adota a fotografia pesada e sombria do talentoso Michael Seresin (de Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban, um dos mais sombrios da série), atenuada só pela presença divertida, mas não distrativa de Macaco Mau (Zahn) ou pela dose de sensibilidade e inocência inspirada por Nova (Miller). E, mesmo que a classificação indicativa PG-13 dilua parte do horror que a guerra proporciona, a narrativa enfatiza o necessário para retratar o conflito sob as lentes cruas e impiedosas convenientes. Enquanto isso, a trilha sonora de Michael Giacchino insere trechos que remetem aos filmes dos anos 60/70 e à série televisiva, falhando, porém, em conjunto com Matt Reeves em uma única sequência que desanda totalmente no tom: em vez da urgência e tensão exigidas, acordes para lá de cartunescos (você saberá identificar do que estou falando).
Mas ninguém poderá comentar sobre Planeta dos Macacos sem mencionar a atuação de Andy Serkis e a evolução da técnica de captura de performance, que atinge patamar de verossimilhança incrível. Matt Reeves demonstra sua enorme confiança ao retratar os macacos em primeiríssimos planos que impressionam não apenas pelo olhar cheio de significados, mas por detalhes relevantes e fascinantes, p. ex.: os olhos enchendo de lágrimas de César e seu rosto ruborizando à medida que os grilhões no seu pescoço são apertados, ou então o primeiro contato entre Maurice e Nova, criado e desenvolvido exclusivamente através do olhar. De nada isto serviria, porém, se não houvesse atores competentes para darem vida a estes construtor digitais, e Andy Serkis é esta joia da coroa.
Com a humildade diretamente proporcional ao talento, Serkis abriu mão da vaidade de ser dele o rosto visto em cena (esta parte, delegou à equipe de efeitos visuais), para abraçar a oportunidade de se dedicar inteiramente à interpretação. No processo, criou personagens multifacetados e trágicos (Gollum), humanizou quem acreditávamos ser apenas um monstro (King Kong), além de se divertir como o Capitão Haddock de As Aventuras de Tintim ou como o Líder Supremo Snoke de Star Wars, embora seja César sua construção mais ambiciosa. Em parte devido ao arco dramático construído para o personagem, sempre na encruzilhada da humanidade e diante de conflitos que questionam seus próprios valores, mas especialmente pelo empenho do ator em estabelecer um mosto de emoções detrás da técnica. Um trabalho tão surpreendente que acaba exigindo de Woody Harrelson não aquela jocosidade e o overacting que traz a seus papéis, e sim um controle pleno do tom de voz e a crença no propósito que guia as ações brutais de seu personagem – lógicas, embora não seja eu quem vá concordar com elas.
Introduzindo ainda o elo perdido entre a trilogia e a franquia original na forma de um personagem que liga ambos os universos, Planeta dos Macacos: A Guerra pode se dar ao luxo de encerrar a trama com o retrato inequívoco de como opera a seleção natural, com a eleição de uns por causa de agilidade e habilidade, em detrimento de outros, vítimas de sua própria monstruosidade.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.