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Três Anúncios para um Crime

Três Anúncios para um Crime

115 minutos

Mildred (McDormand) está engasgada com tanto ódio. Não apenas do estuprador e assassino da sua filha ou do ex-marido que a trocou por uma garota com metade de sua idade ou dos policiais inertes e preconceituoso da minúscula cidade de Ebbing, como também de si própria. Locar os outdoors em uma estrada de pouco movimento, mas que dá acesso à cidade, cobrando providências do xerife Willoughby (Harrelson), é a maneira com que expressa o tamanho de sua indignação. Porém, Mildred mal poderia imaginar a repercussão agressiva de sua atitude dentro da comunidade, especialmente em virtude de Willoughby estar enfrentando um câncer terminal, assim como Dixon (Rockwell), um policial alcoólatra, violento e racista, também não enxergava o poço de rancor em que habitava, que dirá a forma de escapar dele.

Dentro desse cenário desolador e aflitivo, o diretor e roteirista Martin McDonagh (dos ótimos ‘Na Mira do Chefe’ e ‘Sete Psicopatas e um Shih Tzu’) constrói, através do sarcasmo, uma tragicomédia crítica do que é a vida nos dias de hoje em que nós parecemos presos dentro de uma panela pressurizada pela angústia, culpa, vingança e mágoa. É, no mínimo irônico, que a personagem mais improvável da narrativa seja a única a constatar o óbvio, que violência gera apenas mais violência, nem que por acaso, no marcador de um livro sobre pólio, ou seria polo? De toda maneira, o mérito do argumento do roteiro é o de se alimentar da indignação popular provocada por um crime não solucionado e estabelecer um discurso lógico e coerente de causa e efeito, que cresce em dramaticidade com o passar do tempo, sem dispensar o senso de humor nesse percurso acidentado.

Não demora para surgirem os partidários de Willoughby e reações acaloradas contra Mildred ou Welby (Jones), o dono da empresa de publicidade dona dos outdoors. Uma delas, inesperadamente violenta, é retratada por um plano sequência que, de tão bem executado, permanecerá na cabeça do espectador por bastante tempo. A propósito, chega a ser impressionante como o roteiro mantém-se firmemente íntegro à essência de seus personagens, mesmo que isto provoque sentimentos adversos do espectador. Tome Mildred por exemplo: embora seja fácil identificar-se com sua dor e apreciar, do ponto de vista do humor, a acidez e rispidez de seu comportamento, suas atitudes inconsequentes provocam uma rejeição imediata, forçando-nos a caminhar além da fronteira que separa mocinhos de bandidos. Ao mesmo tempo, McDonagh confia tanto no material que toma decisões verossímeis, embora anti-climáticas, sem que estas aparentem sê-las. E confesso que me surpreendi com a hábil trapaça do escritor, que semeia a provável solução da trama em uma carta post mortem e a encena do modo ensinado na escola, apenas para subverter sua conclusão.

Por outro lado, não chega a espantar que McDonagh, dramaturgo, seja excepcional na difícil arte da construção de diálogos ágeis, perspicazes e pertinentes, como a constatação bem-humorada e reveladora de Willoughby de que “se fôssemos retirar todos os policiais racistas, sobrariam apenas três… e eles odiariam os homossexuais”. Enquanto isto, o sermão de Mildred a um padre intrometido é incendiário e multifacetado, ora por revelar sutilmente que esta renegou a fé, ora por expor sua intolerância com injustiças, ora como meio de expressar sua habilidade retórica. Não há palavras desperdiçadas, ainda mais por serem proferidas por personagens construídos com zelo, honestidade e relevância, não importa qual seu grau de importância para a trama.

O fato de todas as atenções recaírem sobre Frances McDormand (que mantém a postura agressiva e desconfiada até diante de quem não lhe deseja mal, embora oferecendo nuances dignas de nota, como a compaixão, a dor e o medo), Sam Rockwell (bem-sucedido na missão de conferir complexidade a um policial que poderia ser apenas dispensado como um estereótipo) e Woody Harrelson (em um de seus papéis mais humanos), todos eles indicados ao Oscar, não é empecilho para que seus colegas de elenco brilhem. Desde os mais secundários – Abbie Cornish, John Hawkes e Peter Dinklage – aos terciários – Sandy Martin, Clarke Peters e Darrell Britt-Gibson, que arrebenta ao peitar Dixon enquanto afixa o outdoor, os personagens gravitam em torno do conflito central da trama, porém a partir de dramas pessoais sensíveis construídos com admirável simplicidade.

Um aspecto também espelhado na fotografia de Ben Davis, que condena Mildred às sombras do contra-luz depois de ser visitada por Anne em sua loja, ou na trilha sonora indicada ao Oscar de Carter Burwell, que traduz liricamente a trajetória melancólica dos personagens. Já o simbolismo narrativo em ‘desvirar’ um besouro de ponta cabeça é óbvio e decepcionante ao manifestar a piedade, o que não se repete no significado meritório havido na perda do distintivo e, após, na sua descoberta.

Ciente de que a solução não está em semear ódio e colher vingança, do contrário, em fomentar o amor e estimular o perdão, ‘Três Anúncios para um Crime’ evita atalhos cômodos para proporcionar, aos personagens, transformações discretas, jamais mágicas ou irreais. Mesmo porque o gesto de tornar as costas aos outdoors, apenas por trafegar no sentido contrário na estrada, já é um indicativo bem sugestivo de que o rancor foi deixado para trás. Ao menos temporariamente.


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