Dentre todos os clássicos da prateleira da Pixar, o mais indicado a receber uma continuação é exatamente aquele que mais demorou a ganhá-la. Não apenas por causa do subgênero de super-heróis, mas sobretudo pela maneira com que a narrativa encerrava, com um gancho para a continuação que demorou 14 anos até conhecer a luz do sol. E antes que você pense nos 13 anos que separam “Procurando Nemo” de “Procurando Dory”, nada naquela animação sugeriria o retorno da Pixar senão o elemento exclusivamente financeiro. Talvez por isto que, após o efeito nostalgia ser esgotado, “Os Incríveis 2” ainda tenha bastantes cartas na manga para não se intimidar com os sapatos largos que deve preencher e construir uma narrativa que se encontra (quase) em pé de igualdade com seu antecessor.
Isso porque o roteiro de Brad Bird (de “O Gigante de Ferro” e “Ratatouille”) repete certos elementos do anterior, embora os empregue com finalidades distintas. O mundo permanece alérgico a super-heróis, e a batalha da família Pêra (como detesto esta tradução) contra o Escavador provoca danos materiais tão significativos que os políticos não veem alternativa senão taxar, mais uma vez, os super-heróis como ilegais. Até que um magnata da telecomunicação, auxiliado por sua irmã, resolve modificar este cenário, convencendo a opinião pública do contrário. Para tanto, recorre à Mulher-Elástica, mais sutil e eficiente do que seu melhor par, o Sr. Incrível, que, a contragosto, permanece em casa cuidando dos três filhos. Enquanto este se habitua com a vida doméstica, aquela se depara com um poderoso adversário, o Hipnotizador.
Curioso como, de posse de uma premissa similar à do predecessor, tendo a inversão do gênero seu elemento definidor, Brad Bird possa proporcionar uma mudança imensa no enfoque da narrativa. Isto permite que a narrativa desperte para questões contemporâneas: o feminismo, na forma como Helena entra no mercado de trabalho para o desespero de Beto, dono do machismo patriarcal típico de quem não faz ideia do significado de compartilhar atividades domésticas; a defesa das individualidades e da pluralidade como algo desejável para a construção de uma sociedade melhor; e a crítica aos que abraçam a figura do super-herói (cof cof os políticos salvadores da pátria) como o único capaz de ser a mudança que nós queremos para o mundo, mas que temos preguiça em começá-la com pequenas atitudes. Neste sentido, o objetivo do Hipnotizador não é megalomaníaco nem tampouco alienado, e sim palpável e concreto. Entendemos sua raiz e compreendemos por que age da forma com que age, tornando-o um adversário narrativamente à altura da super-poderosa família.
Se ter um super-vilão já é meio caminho andado para o sucesso de uma aventura de super-heróis, a outra deve ser contar com cenas de ação que façam contraponto ao investimento emocional. Assim, a narrativa vale-se da liberdade proporcionada pela técnica de animação para pensar cenas que dificilmente vemos em live-action, em escala proporcional aos poderes dos Pêra e dos demais heróis que pipocam na narrativa. De outro turno, por mais que a narrativa use e abuse de Zezé como muleta cômica, afinal ninguém resiste a um bebê fofo e sorridente, especialmente um com super-poderes e controle-remoto para operá-los (!), não tem como argumentar contra a hilária sequência em que este enfrenta seu primeiro arqui-inimigo, depois de identificá-lo em um noir típico.
A narrativa também não cansa de impressionar com a fotografia de Mahyar Abousaeedi e Erik Smitt; este, responsável pela iluminação, contrapõe as luzes quentes do hotel onde está a Mulher-Elástico com as cores mais lavadas, para retratar a maneira com que Beto percebe o próprio lar. Já a montagem de Stephen Schaffer constrói uma narrativa extremamente ágil e fluida, que também sabe distinguir o instante correto para desacelerar, permitindo a Brad Bird os momentos emotivos característicos da Pixar. Finalmente, ainda que o roteiro tenha seu quê de previsibilidade em relação à identidade do Hipnotizador, sabe amarrar as pontas muito bem, deixando um super-vilão à solta antes de este reaparecer na bacana sequência dos créditos finais (não há, porém, cenas após os créditos).
Ciente de que a nostalgia servirá aos jovens pais na mesma proporção que a aventura e o humor divertirão os mais novos, “Os Incríveis 2” é o tipo de continuação que toda produção merece: uma que reconhece os méritos do predecessor, revista-os carinhosamente, mas não permite que isto defina sua identidade, oferecendo alternativas autênticas e pertinentes para corresponder às expectativas gestadas durante cerca de uma década e meia. É chavão, mas eu não ligo: tudo continua incrível.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.