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Black Tea

2/5

Black Tea

2024

111 minutos

2/5

Diretor: Abderrahmane Sissako

Uma década depois do mauritano Abderrahmane Sissako ter dirigido o indicado ao Oscar Timbuktu, ele retorna com um melodrama sino-africano cujas melhores intenções servem só para mascarar sua falta de sensibilidade ao encarar o drama de uma protagonista que sequer tem um conflito dramático para chamar de seu.

Uma espécie de Mary Poppins de adultos (e até adolescentes) emocionalmente inseguros, Aya (Nina Melo) disse não para o casamento e emigrou à China, o Cantão creio, onde tem aprendido acerca da arte dos chás com Cai (Han Chang) e trabalha em uma loja de bagagens, em um bairro tomado por estabelecimentos informais. A relação mestre e aprendiz, tão delicadamente retratada pela direção atenciosa a detalhes e procedimentos, amadurece num relacionamento afetivo e romântico. Apesar de o ambiente ser apropriado para o romance interracial – Aya é querida igual as princesas da Disney -, há empecilhos familiares: a relação de Cai com a ex-esposa Ying (Wu Ke-Xi), não bem resolvida, e segredos do passado criam um conflito mal explorado pelo roteiro, pois artificial de qualquer maneira que enxergarmos.

Estou disposto a negociar valores narrativos. Black Tea não oferece um conflito dramático material. O não dela, encarando o espectador, é só um prólogo, quando descobrimos que Aya não está disposta a abrir mão da felicidade em prol da tradição. Ao chegar à China, há desejos convergentes, mas não opostos. Até dá para argumentar que existe uma ameaça à concretização do romance, embora seja banal pelo que é e pela forma com que os personagens encaram-no. Mas, insisto, negocio este valor porque a narrativa apresenta uma realidade utópica. Muitas etnias habitam na vizinhança, muitos idiomas (mandarim, francês, espanhol, árabe e até português), dentro de um ecossistema saudável e ilustrado na metáfora da negociação de um vendedor chinês com um comprador árabe. Mesmo que sejam incapazes de compreender o significado e a cultura envolvida nas palavras, estão dispostos a transigir e tem o desejo mediado por um tradutor que propõe um atalho.

A China de Abderrahmane Sissako é um mundo idealizado, como também as relações retratadas pela narrativa: Cai escuta Aya, viaja a Cabo Verde para resolver uma pendência paterna. Um parente preconceituoso é colocado no devido lugar quando vomita comentários racistas no jantar. O mundo até tem ódio e ignorância, mas os personagens centrais não estão dispostos a aceitá-los – como Aya não aceitou que a vida dele fosse guiada por uma convenção debilitante. Eu gostaria de viver nesse mundo amoroso, atencioso e paciente, em que as pessoas admiram o amor e dedicação de um pelo outro ou por uma cultura. O que é um conflito dramático perto de uma utopia, não?

Entretanto, que utopia é esta em que Aya é menos um sujeito e mais um objeto? A despeito da ação dela no início da narrativa e do desejo de retornar à Costa do Marfim para praticar seu aprendizado, Aya participa na narrativa na figura de conselheira. É uma escada para que os personagens ao redor resolvem seus dramas, sobretudo Cai, no eterno retorno ao estereótipo do homem que deve “correr” a fim de alcançar a maturidade emocional da mulher por quem é apaixonado – que mansamente o aguarda; a propósito, é um problema repetido também em O Astronauta, exibido no mesmo Festival de Berlim, embora haja peculiaridades mais problemáticas no último.

Para piorar, o roteiro escrito por Kessen Fatoumata Tall e Abderrahmane Sissako emprega não uma, nem duas, mas três vezes (!) o recurso de um personagem que estava sonhando. A cada repetição de um recurso, morre um anjo no céu, e a narrativa cai em uma contradição maior. Se determinado encontro aconteceu apenas num sonho, então certo personagem não aprendeu absolutamente nada e não merece a pessoa que o está esperando, mentindo e atentando contra sua confiança. O sonho durante um jantar provoca sociedades reacionárias em relação a relacionamentos homoafetivos; no entanto, à altura do ocorrido, tem gosto de queerbait. O pior deles é o último, obriga a narrativa até a negar os valores que havia defendido, e mantém a porta aberta a uma interpretação conservadora.

Pensando melhor, jamais desejaria morar na utopia de Abderrahmane Sissako. Prefiro dramas, dores e traumas autênticos do que acreditar em mentiras e contos de fada.

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