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A Casa que Jack Construiu

A Casa que Jack Construiu

153 minutos

Dentre as tantas sensações conflituosas habituado a provocar, jamais imaginei que o polêmico Lars Von Trier pudesse ser desinteressante. Tenho amor por Melancolia e Dogville e repulsa por Anticristo e Os Idiotas, porém este A Casa que Jack Construiu está contaminado pela apatia da escassez de conteúdo a fim de preencher as 2 horas e meia de uma manifestação plena do fetiche egocêntrico do cineasta. É como se o personagem-título servisse como representação do próprio Trier (ou da imagem que este vende à imprensa e ao público), a de misógino, sádico e fascista, sem que houvesse autocrítica. Em seu lugar, a mais pura auto-indulgência, na inserção de trechos de todos seus filmes na forma de homenagem a si próprio.

Sendo assim, a trama subdividida em capítulos, amarrada no todo somente pelo diálogo de Jack (Dillon) com o poeta Virgílio, narra os incidentes por que aquele passou no formato de estudo do personagem assassino e psicótico, com transtorno obsessivo-compulsivo e mania de limpeza e que enxerga que seu trabalho é, na verdade, uma obra de arte (para desespero e discordância de seu interlocutor). Cada incidente é, portanto, a oportunidade para que Jack amadureça como serial killer, em cenas violentas e gráficas que tentar revirar o olhar, bem como a chance para uma argumentação sobre a arte propriamente dita, neste sentido, semelhante ao que fizera The Square – A Arte da Discórdia no ano passado.

Mas o resultado está longe de ser parecido. A começar porque todas as (longuíssimas) cenas de assassinato parecem contentar-se na violência por conta do choque, como se exibir e re-exibir a face de Uma Thurman amassada por uma macaco automobilístico ou a de uma Siobhan Fallon Hogan totalmente desfigurada funcionasse como crítica ou interpretação de algo maior. Nem mesmo os diálogos que antecedem o abate funcionam, já que Trier nunca foi um Quentin Tarantino nesse aspecto. De outro lado, por mais que admire a queda de braços dialética entre Jack e Virgílio, com a introdução de temas variados que tentam explicar ou, ao menos, integrar as ações do primeiro, a impressão que permanece é a de que Trier está apenas se gabando de seu conhecimento, ao tratar sobre a nobre podridão na fabricação de certos tipos de vinho, de conceitos da arquitetura e dos materiais ou da influência do pianista Glenn Gould na conceituação do que é arte.

Não que não haja momentos admiráveis, como o segundo incidente carregado de um humor negro eficiente ao retratar a inexperiência de Jack naquilo que faz ou o terceiro, este sim, dentro da proposta narrativa de ser cruel e preservar as idiossincrasias do assassino. Aliás, a considerar pelo epílogo, o gosto deixado na boca não é azedo, já que é, nos minutos finais, que o diretor encontra a excelência temática e estética por que é tão bem rememorado.

Porém, até que cheguemos lá, passamos por um percurso em que o cineasta escancara de uma vez por todas seus valores apodrecidos. Ao obrigar Matt Dillon a questionar Riley Keough do porquê de os homens serem sempre os culpados, e as mulheres, as vítimas, logo depois de um policial desacreditar esta em benefício da palavra daquele, Trier escolheu um porta-voz apto a destilar todos seus fantasmas. Chega, inclusive, a comparar o holocausto a uma obra de arte, recuperando, em imagens de arquivo, exemplos que entendem serem comprobatórios. E, por mais que estejamos falando de um psicopata a momentos de escancarar a porta de sua insanidade, não há dúvidas que é o diretor que está realizando seu discurso de relativização da violência contra a mulher da forma mais canalha existente: ancorado naquele que é, apelando à memória e excluindo O Grande Chefe (que não vi), o único protagonista masculino de sua filmografia.

Repare que Jack ataca aspectos preciosos para as mulheres (ao menos em sua concepção): o rosto, a prole, os seios, sem esquecer de também humilhá-las verbalmente quando pode e colocar-se sobre um pedestal de superioridade, aspecto reconhecido por Virgílio, mas sem a contundência suficiente para que sirva de mea culpa por parte do diretor. O mesmo não acontece quando suas vítimas são os homens, ora por causa da necessidade, ora apenas como meio de experimentação.

Nem ignorando esse aspecto, moralmente reprovável, A Casa que Jack Construiu poderia ser admirado, pois simplesmente não tem algo a dizer. É como se a fonte criativa do diretor estivesse prestes a secar, condenando-o, no processo, à posição da mais banal indiferença.

Crítica publicada durante a cobertura da 42ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Confira os horários e locais de exibição clicando no link.

Previsão de lançamento no Brasil: 1º de novembro de 2018.


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2 comentários em “A Casa que Jack Construiu”

  1. e sobre o mais importante: a história da arte canonica e eurocentrica ter o fascismo como sua condicao essencial? o filme é todo sobre isso e vc nem mencionou…

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