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O Homem que Matou Dom Quixote

O Homem que Matou Dom Quixote

132 minutos

Há cerca de trinta anos, Terry Gilliam sonhou em visitar La Mancha e adaptar o mito de Dom Quixote. Com Johnny Depp e Jean Rochefort, a produção amaldiçoada logo seria interrompida após este último ser internado com hérnia e uma enchente sem precedentes arruinar o cenário e, com isto, inviabilizar tudo que já fora filmado nos dias anteriores. Tudo isto foi registrado no premiado documentário Lost in La Mancha, em que o ex-Monty Python confessou haver pregado o prego derradeiro no caixão da produção. Somente com o pagamento de U$ 15 milhões de danos por parte do seguro, que assumiu os direitos da produção, que a produção tornou a respirar por aparelhos. Ewan McGregor, Robert Duvall, John Hurt, Jack O’Connell, todos foram cotados para interpretar Dom Quixote e Sancho Pança, antes de Jonathan Pryce e Adam Driver serem escalados.

Tanto esforço, e para quê? A narrativa pega Terry Gilliam no ponto mais baixo da carreira (após O Teorema Zero e O Mundo Imaginário do Doutor Parnassus, também problemática mas desta vez em decorrência do suicídio de Heath Ledger), muito longo do ápice em O Pescador de Ilusões, Os 12 Macacos ou mesmo o divertido Medo e Delírio. E se a estrutura já seria complexa para o experiente cineasta quando planejou pôr sua visão em prática, que dirá agora. Ela envolve metalinguagem, aventura, comédia e fantasia, além de discutir, com superficialidade, sobre avatares, ou seja, há bastante na bandeja de Gilliam e pouco a ser aproveitado.

O roteiro co-escrito por Gilliam e Tony Grisoni (Minha Nova Vida) narra as desventuras de Toby (Driver), cineasta arrogante e estrelinha, amante da esposa (Kurylenko) do produtor russo (Skarsgård), decidido a refilmar o curta-metragem que o tornou célebre. Entretanto, onde havia paixão e espontaneidade, restou somente presunção e pendantismo. Isto até adquirir uma cópia (pirata, claro) de sua produção de um cigano, que desempenha um dos vários papéis simbólicos e sub-aproveitados, e partir em busca dos atores amadores que interpretaram Dom Quixote e Dulcineia. Qual não é a sua surpresa depois de rever aquele (Pryce), ainda preso ao personagem, no caso extremo do Método cinematográfico, e esta, ora ingênua, agora esposa troféu de um gângster perigoso. Assim, tendo resgatado Quixote, que o confunde com Sancho Pança, Tony começa a enfrentar um tormentoso caminho à margem da realidade.

Mas a aventura não empolga, tampouco diverte. É somente derivada ao reaproveitar, pela infinitésima vez, a trilha sonora típica de produções ambientadas na Espanha (autoria de Roque Baños), e se baseia na repetição do encontro de Quixote com adversários enxergados pelo que não são. Antes de fazê-lo, não faltam o puxão de orelha em Sancho Pança (“Por que é tudo sobre você, sua criança mimada?”, uma frase que, óbvio, fala mais sobre Toby do que o personagem do livro de Miguel de Cervantes) e o egocentrismo ao reconhecer suas façanhas, naturalmente apenas literária. Já a fantasia propriamente dita atola na areia do deserto de criatividade, e quando Gilliam pode pôr em prática sua visão, já é tarde demais.

Curiosamente, é a metalinguagem a maior virtude da narrativa, reconhecendo o papel cada vez mais decisivo dos produtores chineses e russos na produção de grande orçamento do cinema norte-americano, além de recordar os infortúnios sofridos no passado, agora na forma da piadinha indecente (um ato de deus é a desculpa a ser dada em caso de atraso no cronograma). Mas é a relação entre ator e personagem e criador e criatura os pontos mais ambiciosos da narrativa, nos quais Gilliam ainda reconhece a própria obsessão pela obra de Cervantes através de sua persona em tela (todas suas narrativas contêm traços de loucura, inegavelmente, mas é esta a mais pessoal do cineasta).

A esse respeito, falta a Adam Driver a simpatia para carregar a trama – afinal, é ele o protagonista -, permanecendo, não por sua causa, e sim do texto, um estorvo aborrecido e merecedor de todas as adversidades por que passa. E se o elenco de apoio nada pode fazer, é Jonathan Pryce que brilha, sobretudo por ser o único que acredita, piamente, em quem é, mesmo não o sendo. O problema de abordagem está na indecisão do diretor em se decidir se Quixote é apenas o alívio cômico ou personagem relevante, com arco próprio, de modo que não sabemos, até tarde, se entimos compaixão por todas as vezes que é humilhado ou se deveríamos sorrir disso.

E, exceto a alucinação envolvendo olhos e boca surgindo em objetos inanimados (cena de terror para quem TOC, como eu), somente durante a festa do terceiro ato é que estamos diante do Terry Gilliam visionário, no carnaval de figurinos curiosos e inusitados e em opções estilísticas que, no entanto, nada acrescentam à farsa. É extravagante e critica a forma como a indústria cinematográfica enxerga seu próprio meio, mas também é a pedra no sapato da narrativa ao acentuar a confusão por que esta passa e sua incapacidade em decidir o que é.

Uma bagunça, sem dúvida. E não é o caso de se opor à realização do sonho criativo do cineasta, pelo contrário, é de se admirar a determinação e obstinação dele ao material. Mas é certo afirmar que O Homem que Matou Dom Quixote que existia em sua cabeça seria bem superior do que esta versão tépida, um sonho concretizado intempestivamente.

Crítica publicada durante a cobertura da 42ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Confira os horários e locais de exibição clicando no link

Sem previsão de lançamento no Brasil. 


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