Quem conhece a predileção da Academia por performances envoltas em transformações físicas, cravou como certo o favoritismo de Nicole Kidman por este O Peso do Passado, mesmo antes de assisti-lo; bastou a foto de divulgação da atriz com o rosto queimado por manchas solares, olheiras fundas e pálpebras avermelhadas e emagrecimento visível. Mas embora tenha uma atuação visceral e competente em seu núcleo, compatível com o trabalho de maquiagem, este trabalho da irregular diretora Karyn Kusama (dos ótimos The Invitation e Boa de Briga, e dos péssimos Garota Infernal e Æon Flux) não é nada além de um drama policial trivial, sem um mistério poderoso o bastante para justificar a maquiagem da atriz ou o envolvimento do espectador.
O roteiro dos colaboradores Phil Hay e Matt Manfredi (Policial em Apuros, R. I. P. D. – Agentes do Além e Fúria de Titãs) pretende conciliar o passado e presente em uma estrutura preguiçosa e repetitiva, que tem como ponto de partida a mensagem recebida pela detetive Erin Bell (Kidman), sugestiva do retorno do inimigo Silas (Kebbell). A partir de então, Erin rasga a cartilha de procedimentos e começa a ir atrás dos antigos membros da quadrilha de Silas, obtendo de um a informação que a leva ao próximo e, assim em diante, até chegar ao encontro final inevitável. A cada etapa no percurso, flashbacks narram eventos havidos há 17 anos, quando a jovem Erin era uma agente infiltrada ao lado do parceiro Chris (Stan) na quadrilha de Silas.
Sendo assim, a trama está mais preocupada com o que ocorreu do que com o que ocorrerá, pois o mistério é pretérito, ou seja, saber como se desenrolou a ação policial de Erin e Chris e no que isto foi determinante para que aquela se tornasse a mulher que é hoje. Já sabemos, por dedução, o que aconteceu com Chris, então restam aspectos pontuais, como o porquê de Silas identificar-se usando uma nota marcada. Além disso, inúmeras perguntas permanecem sem resposta nesse ínterim que separa as duas metades da narrativa: a considerar o estilo de vida de Erin (alcoólatra, insone, reside no carro sabe-se lá há quanto tempo e mistura café com remédios), sua consequente fragilidade física e também o trabalho policial desidioso, a interrogação está em saber como ela permanece com o distintivo ou, mesmo, viva.
Além disso, as idas e vindas no tempo subtraem o prazer que poderia existir na descoberta – um demérito da montagem de Plummy Tucker. Em certo instante, no passado, um dos capangas de Silas é incentivado a ‘brincar’ de roleta russa. Mas a força desse momento é inexistente pois, na cena anterior, no presente, sabemos que aquele personagem está vivo, parecendo ingênua a preocupação de Karyn Kusama com a sequência irrelevante. E vale a pena questionar até que ponto cobrir o passado com o véu do suspense, sonegando ao espectador informações que, claramente, a protagonista possui, serve aos propósitos do estudo de personagem encartado.
Que seria pavoroso se não fosse a atuação comprometida de Nicole Kidman. Vestida com uma jaqueta de couro preta, rebelde como a roqueira Joan Jett, Erin é o tipo de policial que não precisa ser indestrutível para ser durão. Este caractere é fruto do puro niilismo, um que transforma o diálogo “Se você voltar eu te mato, e vai ser fácil porque eu não me importo com o que aconteça comigo” em uma ameaça concreta e crível pela forma com que Nicole a professa. Ao mesmo tempo, quando Erin confessa não saber como resolver certa situação, podemos sentir a impotência emocional em relação à criação da filha, cuja guarda está com o ex-marido, e a voz de Nicole titubeia o bastante para percebermos amá-la, apesar de não ser apta a ser a mãe que esta precisa.
Como costuma acontecer com personagens obcecados, Erin permanece em uma fronteira cinzenta, razão por que Kusama investe na rima visual de enquadrá-la, em primeiríssimo plano, nas sombras (quando a conhecemos) e na luz (quando seu arco dramática aproxima-se da conclusão). E a direção de fotografia de Julie Kirkwood é muito eficiente em retratar a textura areenta e suja que envolve as ações de Erin, proporcionando o julgamento moral de suas ações e a penitência que se auto-impôs nos anos que se sucederam.
Apesar de Nicole Kidman, O Peso do Passado encerra como sendo somente um argumento vira-lata rejeitado da série True Detective. Um drama policial rotineiro, com um desfecho manipulador e, por que não, trapaceiro, mas um que tem uma atuação brilhante no centro. É como diz o ditado, uma andorinha só não faz verão, aplicável a esta narrativa.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.