Diferente dos recentes live actions da Disney (Mogli: O Menino Lobo e A Bela e a Fera, bastante fiéis ao original), a re-imaginação da quarta animação da Disney, Dumbo, somente pega carona no clássico de 1941 e em seus momentos mais marcantes para recriar, a sua forma, o contexto em que o elefantinho amado decola e encanta. Esta mudança conceitual não é corajosa – mas uma imposição dos dias atuais em que o público-alvo não compraria uma produção protagonizada por animais falantes e um número reduzido de personagens humanos -, embora permita desvencilhar-se do original o suficiente para serem produções essencialmente diferentes, o que é sempre bem-vindo quando tratamos de refilmagens.
Enquanto o original ilustrava como o motivo por que Dumbo era desprezado e humilhado pelos demais elefantes e espectadores do circo era, na verdade, sua maior virtude, em uma animação a respeito de bullying e empoderamento antes mesmo de estes termos estarem em evidência, a trama escrita por Ehren Kruger (e, convenhamos, Pânico 3, O Chamado e Transformers 2 a 4 não o capacitariam a escrever esta fantasia) discute como Dumbo pôde inspirar uma família a reunir os cacos depois de sucessivas tragédias, além de exibir todo o funcionamento da indústria do entretenimento. Da descoberta da magia e individualidade à inclusão em uma linha de produção, até a eventual comercialização como uma experiência ao público, enriquecendo quem lucra sobre a arte e deixando terra arrasada por onde passa. A similaridade com a Disney do início desta década é assustadora, sobretudo considerando a aquisição da 20th Century Fox (Pixar e Marvel Studios já haviam sido absorvidas), as demissões em massa resultantes do processo e a insegurança a respeito da perda da visão artística do “falecido” estúdio.
Por que esse subtema estaria incluído em uma superprodução do próprio estúdio? A palavra autocrítica não me parece a resposta correta – é cedo demais para isto, penso -, mas talvez porque, tal como faz V. A. Vandevere (Keaton, em outra ótima interpretação), a Disney acredita que sua feição simpática e sorridente pode iludir, encantar e enfeitiçar o espectador o bastante para este não perceber a incongruência existente no discurso. Daí o porquê de o momento apoteótico do original, o voo de Dumbo, ser aqui encenado mais de meia dúzia de vezes, diluindo seu efeito a cada nova ocasião até nos anestesiar completamente. Assim, os instantes que deveriam entusiasmar e emocionar no terço final somente servem como pálida lembrança do que havíamos visto por volta dos 40-45 minutos, porém com a proposta de “mais é melhor” que virou a marca registrada da Disney de tempos para cá.
É um sintoma de que os dramas dos personagens humanos – o núcleo da trama desta versão – também não eram cativantes a ponto de nos envolver por seus 112 minutos. Neste ínterim, o elefantinho vira uma espécie de instrumento de redenção através do qual Holt (Farrell, apagado) e seus filhos, Milly (Parker) e Joe (Hobbins), renascerão como família, bem como o circo de Max Medici (DeVito, simpático), até todos superem os “tempos difíceis” do pós-guerra e “façam seu melhor ano” no período melancólico da história em que os circos itinerantes começaram a perder audiência para espetáculos planejados como uma fórmula matemática, não como arte espontânea.
Entretanto, isso não quer dizer que a versão dirigida por Tim Burton não tenha seus bons momentos. A começar pelo elefantinho computadorizado, cujos olhos azuis são expressivos e açucarados para que intercalemos cada awn com um own. Além disto, Burton reverencia o clássico sem abrir mão do universo diegético mais ‘verossímil’: em vez de a dona Jumbo ninar Dumbo com sua tromba, ela somente o acaricia ao som de Baby, Mine, que desta vez é cantada ao redor de uma fogueira. Já os elefantes rosa que Dumbo enxergava depois de se embriagar acidentalmente – cena substituída pela pergunta retórica e politicamente correta de Max: Onde já se viu dar bebida alcoólica a crianças? -, foram substituídas por bolhas de sabão gigantesca com a boa dose de imaginação. Nem o ratinho Timóteo ou as cegonhas foram esquecidas: aquele relembrado através de seu figurino característico; aquelas, numa revoada em determinado momento da narrativa.
Visualmente, Dumbo aproveita o olhar ímpar de Tim Burton, que mistura as cores fortes do circo com as nuvens sombrias que aquele período da história trouxe. Em colaboração com o designer de produção Rick Heinrichs, a dupla cria ambientes que falam através de imagens: o escritório de Vandevere é imponente, mas vazio, iluminado por fora, não por dentro, duas pistas que reforçam sua personalidade. A comparação entre os circos é também eficiente, feita com base na escolha da iluminação pelo diretor de fotografia Ben Davis: se o circo de Max parece acolhedor pela iluminação plongé (de cima para baixo), o de Vandevere é o oposto, ainda que o contra-plongé (de baixo para cima) ressalte a magnitude indiscutível de seu espetáculo.
Já a edição de som de James Boyle é eficiente ao dispensar diálogos em deixas sonoras, como o som de uma caixa registradora após Max acordar de seu sono gritando Nós temos um bebê. Além disso, é bem-vindo que Milly inspire-se em Marie Curie e sonhe em ser cientista, uma sugestão feminista que, entretanto, não é melhor desenvolvida pela trama.
Que, em contrapartida, oferece uma mensagem importante e necessária a favor do direito dos animais como conclusão. Não que seja isto que vá içar esta re-imaginação à altura que a Disney esperava, mas ao menos encerra com notas alegres um trabalho pedestre e longe de ser mágico como ver um elefante voar.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.