Após o desfecho arrebatador de Toy Story 3, que aparentemente encerrava o arco de histórias iniciado em 1995, havia um ceticismo ou quiçá ansiedade ao redor da necessidade de se produzir uma quarta parte. Inclusive, seria hipócrita com vocês caso também não me incluísse no grupo de quem achava que a Pixar queria, somente, explorar financeiramente sua franquia bilionária. Ainda bem que estávamos errados e, mesmo que Toy Story 4 pareça um mero epílogo para a gangue de brinquedos como um todo, é o desfecho que Woody, o protagonista de toda a série, de fato merecia.
O roteiro, escrito por Stephany Folsom (Thor: Ragnarok) e Andrew Stanton (Toy Story) e concebido por oito cabeças, resgata a personagem Betty (Bo Peep, em inglês) antes de esta ser empacotada e doada por Molly, crescidinha o bastante para não precisar dormir com a luz acesa durante a noite. A despedida é comovente e dita o tom desta sequência ao remeter à questão filosófica do propósito ou, para ser claro, o sentido da vida, sobretudo quando Woody começa a ser esquecido com frequência no empoeirado armário de brinquedos por Bonnie, que o herdou de Andy. Inconformado com esta situação, o caubói reencontra uma razão de existir ao proteger Garfinho (Forky), literalmente criado por Bonnie para ser seu melhor amigo e acompanhá-la no jardim de infância que a aterroriza. Entre idas e vindas da lixeira, Woody ensina ao novo amigo qual sua importância para Bonnie, enquanto lida com as consequências de a garota não o enxergar como Andy e existência de infinitas aventuras no mundo além da janela do quarto.
Uma destas aventuras acontece dentro do antiquário Segunda Chance, o ápice em matéria de design de produção da franquia. Afora ser onde você encontrará a maior quantidade de referências da Pixar por metro quadrado – como a máquina de escrever de Anton Ego de Ratatouille e o foguete de Bing Bong de Divertida Mente -, é ainda um espaço de abandono e, por isto mesmo, acertadamente macabro. Os fachos de luz fraquejam e sequer iluminam os corredores apertados, extensos e povoados por teias de aranha, em um cenário de terror beneficiado pelo emprego de músicas na vitrola como pano de fundo. É também onde reina a boneca Gaby Gaby, esquecida graças ao defeito em sua ‘voz interior’ e que deseja obter a caixa de voz de Woody com a ajuda de um sinistro quarteto de bonecos ventríloquos, nem que para isto precise sequestrar Garfinho.
Relevante notar como os personagens principais desta aventura não buscam apenas sentido e propósito, mas também sua voz: se Gaby deseja encontrá-la a fim de ser adotada por uma criança acertadamente batizada de Harmonia (Harmony, em inglês), Buzz recorre a suas mensagens pré-configuradas, como se pudesse tomar decisões difíceis a partir daquilo que os outros programaram para si. A lógica também pode ser aplicada aos ventríloquos, presos aos desígnios de Gaby por não terem a capacidade de expressar a própria voz, ou a Woody, que dispensaria a própria caixa de voz porque sabe que esta não pode ser confundida com a consciência que possui.
Dentre novos personagens, como os insanamente hilários Patinho e Coelhinho (voz original dos amigos Jordan Peele e Keegan-Michael Key), Duke Caboom (Reeves), que, como todo brinquedo de Toy Story, carrega a ferida da inadequação pelo fracasso de não ser quem sua criança pensava que era, ou Iza Risadinha (Giggle McDimples, originalmente), é o retorno de Betty que oferece a possibilidade de a narrativa introduzir temas sobre empoderamento sem que pareça apenas estar cumprindo uma agenda. Em vez de conservar o figurino de pastora e donzela indefesa, a narrativa acerta ao se inspirar na Imperatriz Furiosa de Mad Max: Estrada da Fúria – a sua “deficiência” – para adaptar Betty aos tempos atuais, inserida no mundo livre dos brinquedos perdidos e comandando uma geringonça na forma de gambá pelo parque de diversões. Sem precisar ser resgatada por ninguém, Betty assume o posto de guia do destino e da aventura, além de participar de duas cenas que nasceram icônicas – uma no início e a outra no fim – por rimaram através da posição das mãos dos personagens e da ideia de quem está ‘dentro ou fora da caixa’.
Igual a ela, Garfinho também oferece discussões, desta vez existenciais, diante do conflito entre cumprir a função a que está designado e depois ser atirado ao lixo ou ser o brinquedo querido de Bonnie que vai descobrindo, aos poucos, como mexer as mãos ou caminhar com os próprios pés, igual a criança. O visual do personagem oferece uma crítica a padrões de beleza e aparência, revelando que em vez de ser o lixo que pensa ser, ele é um milagre fruto do amor de uma criança e tem importância maiúscula mesmo diferente de todos os demais.
Afora isto, a direção do estreante Josh Cooley proporciona uma forma inédita de enxergar Woody além do amigo sempre presente da canção principal. Assim, a narrativa evidencia, com sutileza, traços negativos: enxergá-lo detrás das persianas do armário como um voyeur – inclusive com o mesmo enquadramento – torna sua dependência emocional patológica às vezes, enquanto o egoísmo com que enxerga sua missão o cega, ironicamente, ao próximo, e note como Woody não conhece nem recorda o nome das ovelhas de Betty (ao que ela lhe responde você nunca perguntou, no primeiro caso). Isto somente ajuda a conferir a camada de verniz adicional na personalidade já tridimensional do brinquedo, permitindo ainda que seja um reflexo do comportamento por vezes excessivo diante de quem amamos.
Mas Toy Story não seria o mesmo sem a trilha sonora de Randy Newman, cujas canções doces e melancólicas dirigem a narrativa ao sentimentalismo não-piegas presente na maior parte das produções da Pixar com momentos que rivalizam, inclusive, com a passagem de bastão de Andy a Bonnie no antecessor. Com a mistura de nostalgia e redescobertas, bem como a sensação de dever cumprido e fechamento, Toy Story 4 é a cereja que faltava a esta franquia irrepreensível e inesquecível.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.