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Muralla

Muralla

90 minutos

O cinema é o atalho para que conheçamos histórias além do estreito círculo social em que vivemos, estabelecemos identificação com variados personagens ou, quando menos, empatia para que entendamos o que guia suas ações e, de quebra, possamos viajar para países que não sonhávamos conhecer. “Muralla”, produção boliviana representante do país no Oscar do ano passado, permite que o espectador se familiarize com a história de Jorge, ex-goleiro campeão pelo San Jose e que agora trabalhe como motorista de microônibus nas ruas da cidade de Oruru.

A caracterização de Jorge – a barba dias por fazer, o cabelo sujo e desarrumado -, de seus figurinos – maltrapilhos e rotos – e do veículo – caindo aos pedaços – antecipam a condição financeira precária do sujeito, que precisa realizar pequenos delitos junto ao amigo, Cacho, para ajudar no pagamento do tratamento do filho, internado em coma no aguardo de um transplante. Podemos presumir quais sejam as razões que levaram Jorge de ser o vitorioso esportista até amargar a situação atual, e este esforço no preenchimento de lacunas – feito nos instantes em que a produção afrouxa seu ritmo – soma à tarefa de estabelecê-lo como um personagem tridimensional e que merece nossa atenção, apesar das ações criminais que comete.

A maior delas, a participação na organização criminosa de tráfico humano com o sequestro da garotinha que chegou a todos os noticiários (“8 desaparecem diariamente”, segundo as estatísticas dadas pelo filme). Por razões em que não irei me aprofundar, Jorge arrepende-se do crime e decide remendá-lo, como pode, em uma espécie de “Busca Implacável” realista e menos dado a espetáculos.

Um dos pontos centrais do roteiro escrito por Fernando Arze (que interpreta Jorge), Camila de Urioste e Gory Patiño (que dirige) está no relacionamento entre o protagonista e Cacho (Mercado), e as ações destes após determinada cadeia de acontecimentos da narrativa. Além de escaparem ao que convencionalmente acontece em produções similares a esta, os meandros da trama resultam em personagens ricos, que agem em conformidade com a ética ou moral interna que lhes rege. A espiritualidade, misticismo ou superstição, decida como preferir, desempenha papel essencial no desencadeamento das ações, com a participação de alucinações recorrentes que representam arrependimento, culpa e punição do protagonista e o fardo que atira sobre suas costas.

Além disto, embora possamos ter ressalvas em relação a certas decisões do roteiro – tipo no casuísmo com que desenha o funcionamento de uma parte da organização, desalinhada com a seriedade esperada de quem atua à margem da lei ou, então, no desfecho simbólico porém incompleto -, este cumpre o papel de suscitar nossos questionamentos em torno da simpatia que acabamos por gerar em relação a Jorge. Não existe desculpa para seu crime hediondo, e Fernando Arze está competente em retratar a degradação física ainda maior à medida que a culpa corrói seus sentidos e percepção, mas é intrigante como mesmo apresentando-nos a este anti-herói, torcemos para que este alcance sua missão de redenção.

Melhora porque a trama percorre caminhos imprevisíveis e que não conseguimos antecipar com a mesma facilidade de obras convencionais. Se tínhamos a segurança de que Bryan Mills resgataria sua família na trilogia “Busca Implacável”, esta certeza está ausente aqui, permitindo que nós sintamos a aflição de quem pode, ou não, cumprir sua missão. Andar sobre este terreno inseguro auxilia a narrativa a fugir do lugar-comum em se tratando de seus vilões, como o religioso interpretado por Pablo Echarri, ou o Chaco de Cristian Mercado.

Tantas qualidades ajudam a diluir o ponto fraco da narrativa, meramente técnico e fruto do orçamento apertado, e também de algumas más decisões do diretor Gory Patiño, como o emprego exagerado de planos inclinados e do steadicam – aquelas cenas em que Jorge ou Cacho correm pelas ruelas da favela com a câmera em close em seus rostos. Ao término, no entanto, “Muralla” é uma daquelas produções enriquecedoras que, além de servirem aos fins da arte e entretenimento, ainda ajudam o espectador a verter o olhar a um mundo que pode estar do nosso lado e que o comodismo nos impede de enxergar.

Publicação escrita durante a cobertura do 47º Festival de Cinema de Gramado

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