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O Homem Cordial

O Homem Cordial

83 minutos

Quando O Homem Cordial tem início, não sabemos exatamente a razão por que o roqueiro sexagenário Aurélio Sá (Miklos) é hostilizado durante o retorno de sua banda aos shows. E, durante boa parte do tempo, continuamos ignorantes às circunstâncias anteriores à fatídica noite em que Aurélio é responsabilizado por haver provocado a morte de um policial militar e pai de família, tentando reunir as peças colocadas paulatinamente a fim de reconstruir o melhor quadro que possa explicar o que de fato aconteceu. Enquanto a imagem permanece borrada, o diretor Iberê Carvalho (de O Último Cine Drive-In) problematiza a polarização e a onda crescente de ódio na internet e suas ramificações.

Com roteiro escrito por Iberê e Pablo Stoll, o ponto de partida para o argumento nasceu durante uma manifestação pró-impeachment da ex-presidente Dilma Roussef, quando um menor negro foi linchado por aqueles que provavelmente se autodenominariam “cidadãos ou justiceiros do bem”. Ao se indagar a respeito do que faria em idêntica situação, a dupla construiu Aurélio, cujas raízes nasceram da época em que colocar adesivos de Che Guevara em suas guitarras era descolado e em que letras contra a atuação truculenta da polícia eram recebidas de braços abertos pela juventude revolucionária cansada de apanha pela mãos da Ditadura. Nossa juventude não é mais a mesma.

Em seu lugar, uma mais preocupada na autopromoção nas redes sociais junto aos seus, nem que para isto finja ser “fã” de artista ou figura pública para emparedá-lo e, então, apontar o dedo, digo, a câmera em sua cara e questionar opiniões e ações. O assassinato de reputações daqueles que pensam diferentes é só o ponto de partida de uma série de mazelas que Iberê enfatiza com propriedade: a polarização do discurso político (não confundir, por favor, com o partidarismo), o vômito de ódio nas redes sociais, a ação truculenta da polícia contra parte oprimida da sociedade.

Para retratar este Brasil que sangra a vida dos seus, a fotografia de Pablo Baião investe na câmera na mão e, com isto, insere o espectador na ação, permitindo que nos aproximemos de Aurélio, do mauricinho que o atormenta, do capitão da polícia e da mãe que lamenta o desaparecimento (ou a morte) do filho caçula, na cena mais intensa desta narrativa repleta de socos fortes para desferir na nossa cara. A urgência é ainda maior pelo controle de ritmo do diretor e da montadora Nina Galanternick, que entendem a importância de estender, segundos além do comum, a duração de uma sequência que revela o que seria somente mais uma transação comercial inocente, focalizando no rosto desconfiado e, depois, desesperado de mais um mártir do preconceito social.

Em frente às câmeras, a tarefa está a cargo de Paulo Miklos, em uma composição sutil em gestos – -repare como, ao deixar o restaurante, ele pensa em cobrir a cabeça com o gorro do casaco para passar despercebido, antes de voltar atrás e levantar a cabeça -, porém enérgico em conteúdo. Ao lado dele, Thaíde, Dandara de Morais (Ventos de Agosto), Thalles Cabral (Yonlu) e Tamirys O’Hanna compõem um time de intérpretes competentes, que seria mais eficiente se o roteiro cumprisse melhor a tarefa de estabelecê-los com maior profundidade.

Salvo Tamirys, que interpreta a irmã do garoto desaparecido com uma angústia sensível e com a qual podemos nos relacionar com o mínimo de esforço, o restante tenta extrair o máximo de um roteiro que tem, como ponto fraco, a forma simplista como os desenvolve. O que seria, teoricamente, uma decisão minimalista de revelar aquele grupo reunido pelo acaso a partir da fração que revela, custa à narrativa perguntas sem resposta e a sensação de que, por mais que tenhamos estados em sua companhia durante significativa parte do tempo, só o destino de Aurélio que interessa.

Há certas decisões do roteiro que, embora sirvam para dinamizar a narrativa em direção ao que Iberê pretende e conferem a atmosfera urbana noturna tão oportuna, inserem pontos de interrogação na cabeça do espectador, do tipo que nós terminamos por perguntar por que certo personagem tomou aquela atitude e não uma outra que seria mais razoável. Da mesma forma, até entendemos a maneira arbitrária e maniqueísta com que age e reage um capitão da polícia militar, mas qual a necessidade de esbaforir lufadas de cigarro perto do rosto de Aurélio como um vilão de gibi faria, quando já lhe bastava o ardil e a retórica agressiva? E, por mais eficiente que seja a sequência logo antes do epílogo, a inocência ou culpabilidade do acusado de furto não alteraria em nada a tese arguida pela narrativa, até mesmo diante do desconhecimento de Aurélio, que agiu como um cidadão do bem faria: repudiando a violência, ainda mais na forma como ocorreu.

Cenas iguais a esta são atalhos para mexer mais facilmente com o ânimo do espectador e envolvê-lo nesta tragédia cotidiana, já que testemunhar injustiças atiça nosso brio e ferve o sangue. São, porém, decisões que empalidecem diante do simbolismo proporcionado pelas grades, e o significado de abri-las e cerrá-las a depender da cor da pele. Nada que prejudica, porém, a relevância de O Homem Cordial, uma chaga infelizmente contemporânea.

Publicação escrita durante a cobertura do 47º Festival de Gramado

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