O cinema é um instrumento de debate dos problemas sociais contemporâneos, dos quais se alimenta para construir suas histórias, e este “A Odisseia dos Tontos”, o candidato argentino para disputar o Oscar de Melhor Filme Internacional, comenta o ‘hoje’ a partir do ‘ontem’. Ou seja, abre um parêntese para cutucar a crise econômica da gestão de Maurício Macri e seus efeitos no tecido social, a partir das consequências daquela ocorrida em 2001 – uma com que o brasileiro poderá se familiarizar caso recorde a era Fernando Collor -, que trouxe “pobreza ou, no melhor dos casos, angústia e desesperança” à população, como cita Fermín, o protagonista vivido por Ricardo Darín.
O roteiro adaptado do livro de Eduardo Sacheri traz Fermín, sua esposa (Llinás) e Fontana (Brandoni) tentando convencer o povo de uma cidadezinha a reativar a economia local com a criação de uma cooperativa. Eles reúnem uma parte significativa da quantia necessária e, quanto ao restante, tentam obter por meio de empréstimo bancário, cujo entrave burocrático seria supostamente resolvido caso Fermín depositasse o que possui em sua conta-corrente… isto, na véspera da crise que congelou a atividade bancária e confiscou os depósitos. Diante da frustração de haver perdido o que, com dificuldade, recolhera em prol da comunidade e após uma tragédia pessoal, Fermín entra em depressão, até Fontana expor-lhe o plano do gerente do banco em conluio com um empresário, “amigo do Prefeito”, e que resultou com este tomando todos os dólares da agência minutos antes da crise ser instaurada. É aí que, ao lado de todos os ‘tontos’ tapeados pelo sistema, bolam um plano para tomar de volta o que é seu por direito.
Como um clássico heist movie (filme de assalto, tal qual “11 Homens e Um Segredo”), a narrativa de Sebastián Borensztein tem sua parcela de personagens curiosos e irreverentes, com uma história de fundo dentro da comunidade, um vilão que representa aquilo contra o qual os ‘tontos’ combatem e a estrutura clássica iniciada com a formação do grupo, passada para o planejamento e, enfim, culminando na execução no clímax. Embora haja o interesse social relevante na origem e a cultura local a individualizarem a narrativa, o roteiro pisa em terreno conhecido, provando que um clichê não é necessariamente ruim, por definição, por ser apenas a solução que, após proporcionar os resultados esperados, passou a ser repetida por sua eficiência.
Esta ausência de originalidade, no entanto, é prejudicada pela redundância narrativa, adepta à abordagem que suprime construções visuais em favor da revelação por palavras (distinto do que o cinema norte-americano tem feito com regularidade). Isto acontece em mais ocasiões do que razoáveis, como quando Fermín deve re-explicar sua ideia aos integrantes do grupo logo na cena subsequente depois de apresentá-la ou, então, na forma como reage à confissão do filho Rodrigo (Chino Darín, filho de Ricardo), que insiste na repetição de algo que já sabemos: a revelação do plano à secretária de Manzi e a certeza de que esta não daria com a língua nos dentes.
Por mais que seja gostoso conferir a formulação do plano por homens médios, irresignados e inconformados, sempre que esta esbarra em um ponto sem saída (p. ex., o alarme ou a alimentação elétrica), o roteiro recorre sempre ao conhecimento de Hernán (Caponi), que, a despeito do que crê sua mãe, é mais apto do que parece. Evidente que, por ser inusitado o local onde está a quantia desejada, também deve ser a técnica, pensada a partir do cinema, a ser colocada em prática. E a narrativa combina o potencial cômico existente na situação, a tragédia social (e particular) e a urgência característica aos filmes de assalto para construir uma obra que, se não está à altura do que a Argentina desenvolve de melhor, ao menos é um passatempo satisfatório com uma conclusão acertada: enquanto o dinheiro nas mãos de um capitalista é enterrado, literalmente, para benefício próprio e de ninguém mais, a mesma quantia, na mão do povo, é distribuída entre todos e usada para movimentar a economia e gerar empregos.
Assim acontece no cinema. Diante da crise por que atravessa o Incaa (Instituto Nacional de Cinema e Artes Audiovisuais, a Ancine dos hermanos), após as medidas restritivas de Macri, nada mais resta aos artistas do que, igual à ficção, partir para recuperar o que é seu. Se farão como os ‘tontos’ liderado por Darín, já não sei, mas, como na narrativa, a míngua financeira para a arte tem como resultado óbvio o candidato ao Oscar mais anêmico, ainda que bem intencionado, enviado pelo país de toda esta década.
Crítica publicada durante a cobertura da 43ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.