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Parasita

Parasita

132 minutos

O sul-coreano Bong Joon-ho sempre manifestou seu interesse por questões sociais, sobretudo na ficção-científica “Expresso do Amanhã”, quando empregava um trem como a alegoria da pirâmide desigual de classes, mas é neste “Parasita”, o vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes e representante do país no Oscar de Filme Internacional, que o diretor acertou em cheio na ferida, onde permaneceu igual a uma criança que, apesar da dor provocada, mexe com curiosidade no cascão que a recobre, sem receio de que arrancá-lo resultará em outro sangramento.

Com este misto de fascínio e repulsa, Joon-ho apresenta uma família de classe média baixa, residente em um apartamento a meio metro abaixo do limite da rua, o que estabelece de forma visual sua posição inferiorizada dentro da estrutura social. Enquanto passeia pelos apertados e superlotados cômodos, reparamos como, por uma questão de hidráulica, o vaso sanitário está em uma posição mais elevada. E nem precisamos ser doutores em imagética a fim de compreender o que Joon-ho pretende comentar com este símbolo. A chance de fugir desta “prisão” aparece quando Ki-woo (Woo-shik) é convidado por um amigo a substituí-lo como tutor da filha mais velha da abastada família Park. Não tarda para que Ki-woo abrace a oportunidade de empregar sua irmã, Ki-jeong (So-dam), como a tutora de artes do filho caçula. Ela, a seu turno, elabora planos para que o pai, Ki-taek (Kang-ho), e a mãe, Chung-sook (Hye-jin), também sejam contratados como motorista e governanta, respectivamente.

À primeira leitura, o parasita do título são os Kim, que fagocitam as oportunidades postas à mesa como se estivessem abocanhando as sobras que caem do banquete dos Park, a fim de terem uma vida mais digna do que anteriormente, quando lamentavam que o andar superior havia incluído uma senha de acesso à rede Wi-Fi ou comemoravam a dedetização da rua como uma exterminação gratuita dentro do lar. Com bom-humor, Joon-ho ilustra o nível de distanciamento que os Kim precisam conservar entre si e a preparação, tal como se fossem atores, para desempenhar convincentemente os papéis, em face às situações enfrentadas no dia a dia. A satisfação não é somente formal, mas material, pois, a despeito do estelionato cometido contra os Park, existe uma versão enviesada de justiça social (melhor do que não haver nenhuma), ainda mais ante a alienação da família hospedeira, particularmente da Sra. Park, a dona de casa da família tradicional patriarcal.

Os Parks não parecem ter tempo livro para conviver, ainda mais dentro da mansão espaçosa onde habitam, e terminam por negligenciar as atividades domésticas e a criação dos filhos a terceiros, perdendo o contato com o que, em verdade, está acontecendo. São presas fáceis porque evitam abaixar a cabeça para enxergar quem está abaixo, e se isto seria, noutro caso, um gesto de humanidade por apenas notar a condição do próximo, aqui se torna periclitante ao evidenciar que não percebem as pistas da armadilha em direção a qual caminham. Ainda assim, não sentimos pena por estarem sendo explorados, porque também parasitam os Kim, embora de modo distinto, já que, se não obedecerem à risca a cada comando dos patrões, podem ser substituídos como se fossem peças de maquinário (“É fácil demais contratar uma nova governanta”, menciona o Sr. Park).

Deve ser porque a pobreza cheira igual em todo lugar, diferentemente da riqueza. E o odor serve como o catalisador de eventos imprevisíveis, estabelecidos por um roteiro que rejeita o comodismo de soluções ordinárias. Seu interesse, desde o princípio, está em evidenciar o intrincado relacionamento entre os personagens, a partir da adição de elementos narrativos mais relevantes do que aparentam ser. A inocência da brincadeira do caçula como um índio é uma representação de como terminamos por nos apropriar da tragédia e sofrimento alheio, no caso a dizimação de um povo por questões exploratórias, como se fosse uma fantasia. Já os Kim, cuja posição social não é atestado de ignorância, empregam um artifício linguístico para expor a maneira desdenhosa com que enxergam os Park: “Ela é legal, apesar de rica”, menciona Ki-woo. Em resposta, Chung-sook corrige “Ela é legal porque é rica”. E, distinto de “Bacurau”, a crítica ao imperialismo norte-americano é feita de uma forma sutil, embora esteja presente a partir da observação do Sr. Park sobre a durabilidade de um produto deste país.

Dentro da proposta, o design de produção da mansão onde acontece a maior parte da ação estabelece um ambiente indiferente, tal como os Parks, apesar da exuberância e sofisticação impressas pelo arquiteto renomado que o projetou. E, sem correr o risco de entregar quais são os pontos de virada da trama, pois a surpresa e o choque são indispensáveis para melhor apreciar o resultado da narrativa, é intrigante refletir a respeito de quem é a “alma” do lar e a repercussão disto dentro da discussão provocada por Joon-ho. Já a utilização da música clássica atua como um elemento catártico que, logo, modifica a abordagem despretensiosa e irônica em favor de outra urgente, trágica e eminentemente humana, adequada à abordagem da narrativa.

Isto vem, na direção do público, como uma chuva torrencial. Uma que, aos afortunados, é sinônimo de benção ou, quando muito, um mero contratempo. Entretanto, para a maioria, é a gota d’água que restava para romper o fiapo que os conservava presos à esperança de uma vida melhor, mas inatingível. Senão nos sonhos que contamos para nós mesmos como uma forma de iludir nosso conformismo ante a desigualdade invencível.

Crítica publicada durante a cobertura da 43ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo

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