O 11 de setembro modificou a dinâmica geopolítica de modo irretratável e estabeleceu um ambiente propício à espionagem, paranoia e mentira que, até hoje, dita as decisões da nação mais poderosa do mundo, os Estados Unidos, em defesa de seus interesses. Foi por isto que, em 2003, a NSA (Agência Nacional de Segurança) determinou que a inteligência britânica espionasse os integrantes neutros do conselho de segurança da ONU (Organização das Nações Unidas) para que coletasse ‘inteligência’ que os obrigasse a votar favoravelmente à declaração de guerra ao Iraque que, alegadamente, possuía armas de destruição em massa jamais foram descobertas. Era somente uma cortina de fumaça para que George W. Bush terminasse a guerra do golfe travada durante o mandato de seu pai, com o auxílio de seu capacho europeu, o então Primeiro Ministro Tony Blair.
Revoltada com a atitude cínica do mandatário britânico em rede nacional, que manipulava a opinião pública alimentando as manchetes dos jornais com fake news, a ‘espiã’ Katherine (Knightley) esbravejava contra a televisão verdades que não fariam diferença, pois ninguém as estava escutando. Ela é apenas uma formiga operária, incapaz de modificar os desígnios da rainha. Entretanto, quando um e-mail confidencial, que confirmava a ilegalidade da declaração de guerra chega aos trabalhadores do GHCQ (Quartel General de Comunicações do Governo), Katherine resolve, usando uma amiga pacifista, revelá-lo à imprensa para que esta tomasse conhecimento e divulgasse o que o governo planejava realizar pelas costas do cidadão. É a prova de que Katherine se importava e trabalhava para o povo, ainda que isto não lhe trouxesse nenhum ganho, mas somente perdas, sobretudo por ser casada com um imigrante turco – tomado por um muçulmano simpatizante de Saddam Hussein, mesmo que seu povo, o curdo, houvesse sido assassinado pelo ditador.
O thriller de Gavin Hood, que o co-escreveu ao lado de Sara e Gregory Bernstein, é mais convencional em sua estrutura e fotografia do que seu primo “O Relatório”, que igualmente discutia o mundo pós-verdade – neste caso, a tortura praticada pela CIA contra acusados de terrorismo. Em sua narrativa, convivem três filmes em um: a história pessoal de Katherine e a perseguição estatal que enfrentou por haver contado a verdade e ferido a Lei de Segredos Oficiais; um thriller jornalístico que revela, a quem parece haver esquecido recentemente, que o jornalismo não é assessoria, porta-voz nem relações públicas do Governo, mas forma e instrumento a fim de questionar as ações praticadas e denunciar aquelas ilegais; e também um drama de julgamento, por mais breve que este tenha sido.
A citação clássica do já falecido Peter Finch em “Rede de Intrigas” – “I’m mad as hell” ou “Eu estou indignado” – é aproveitada para pontuar o estado de espírito de Katherine e, de quebra, seus compatriotas na resposta à pergunta introdutória da narrativa (“você se declara culpada ou inocente?”). E o ritmo é apreensivo, alimentando o espectador com os fatos que exporão os Governos pelo que são, não pelo entes transparentes que supostamente seriam, a começar pela dificuldade em identificar se uma pessoa é funcionária da NSA. A narrativa é ainda uma forma de mostrar como funciona o jornalismo imparcial, privilegiando a história e os fatos e não tentando modificá-los, adoçá-los ou suprimi-los para atender a editoria que, no caso do Observer, era pró-guerra, e o rigor na checagem do documento revela como não havia margem para erro.
Com seu desenvolvimento próximo àquilo a que estamos habituados, inspirando revolta enquanto constrói simpatia com os personagens, é relevante apresenta o elenco com atores talentosos, como Matt Smith (The Crown), Matthew Goode (Watchmen), Rhys Ifans (Um Lugar Chamado Notting Hill) e Ralph Fiennes, aqui em um atuação discretamente gigante ao estabelecer o (raro) advogado pragmaticamente idealista e que defende, independente dos meios, sua cliente.
E, por se basear em fatos, “Segredos Oficiais” não resiste, infelizmente, ao epílogo já clichê em que a verdadeira Katherine Gun aparece e revela a preguiça da narrativa em caracterizar Keira Knightley da maneira adequada. Um lapso que, no entanto, não modifica a qualidade deste suspense que clama para que defendamos não políticos, que mudam a cada eleição, mas o povo e a verdade.
Crítica publicada durante a cobertura da 43ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.