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História de um Casamento

História de um Casamento

136 minutos

Não é que Charlie e Nicole deixaram de se amar. O sentimento permanece evidente na forma como ambos trocam olhares e como confidenciam isto com sua linguagem corporal. Ambos, contudo, não podem mais continuar casados, pois, como dois galhos tortuosos de uma árvore, cresceram tão separados um do outro que, agora, é impossível juntá-los. Resta somente a esperança da separação harmoniosa, a fim de respeitar a memória da relação, os familiares e o melhor interesse de seu filho, Henry. Histórias têm início, meio e término, e, por mais que os depoimentos um sobre o outro, na cena introdutória, criem em nós o desejo de que aquele casal recue de sua decisão – mesmo que saibamos apenas de passagem como era o relacionamento conjugal -, isto provavelmente não acontecerá. Estamos nos capítulos derradeiros do livro que começamos a ler agora, o tema deste maduro “História de um Casamento”.

Escrito e dirigido por Noah Baumbach (indicado ao Oscar pelo roteiro de “A Lula e a Baleia”, o que deverá acontecer de novo), o roteiro tem como premissa a tentativa frustrada de honrar a premissa da separação amigável, à medida que o ressentimento, como uma erva daninha, começa a crescer e roubar o sol do afeto que ainda existia. Separados, fisicamente inclusive, pois Charlie está em Nova York, na costa leste, a frente da montagem teatral que Nicole estrelava, e esta viajou à Los Angeles, costa oeste, onde está escalada para o piloto de uma série de televisão e mora com sua mãe, os dois mal conseguem enxergar como o processo de divórcio pode ser um instrumento degradante em comparação com a mediação, que trazia consigo o agridoce da despedida.

Se “Amar é reagir”, o desamor é ação, e tão logo Nicole contrate a advogada Nora (Dern), a vida de Charlie vira de cabeça para baixo, obrigado a viajar com frequência e abdicando de sua carreira no teatro para visitar o filho e aproveitar os momentos que têm com ele. É o maior problema desta trama, que mostra Noah Baumbach mais simpático a seu personagem masculino do que ao feminino, um fato notório quando Charlie evita contratar Jay (Liotta), o tipo de patrono que incita a baixaria conjugal nas cortes de família, pelo mais acessível e também humano Bert (Alda). Parece, de bem longe, que Noah desmerece a dor e mágoa de Nicole, que confessa em lágrimas que não era vista como uma pessoa independente de… “como é o termo oposto a ex-noivo?”. Com a relação indefinida como é esta terminologia, o roteiro reafirma a ironia de todo o processo, cujo objetivo é de blindar e defender Henry, embora faça isto, ironicamente, com o dinheiro do casal que poderia ser investido em sua formação universitária, por exemplo.

Enquanto descobrem que seu casamento – um turbilhão de alegrias narradas no prólogo, nas memórias preservadas nos porta-retratos espalhados por onde andamos e no rosto de Henry, virou somente o número de identificação do processo, Charlie e Nicole caminham rumo à ruptura definitiva e dolorosa, que proporciona cenas merecedoras de prêmios a ambos os atores. Particularmente, aquela ocorrida no início do terço final da narrativa no interior do apartamento, decorado indiferentemente, é de uma angústia imensa, toda realçada pela mise en scène – o posicionamento e movimento dos personagens na cena -, enquadramentos e movimentos de câmera: separados nos cantos do quadro e com a tensão a flor da pele, nós nos aproximamos, assustadora e gradativamente, de seus rostos até que as palavras que saem de suas bocas sejam mais afiadas do que a faca canivete que Charlie guarda consigo.

Isto não significa que falte bom humor. Assim, um dos acertos do roteiro – cujos diálogos soam reais como disputas domésticas podem ser e ao mesmo tempo sofisticados, revelando que Noah aprendeu, muito, com o cinema de Woody Allen, de quem tira sua inspiração – é o equilíbrio fino entre a tragédia e o humor situacional. E este não é somente direto, como também sutil, tipo assistir à mãe de Nicole fechar os armários deixados abertos de um modo automático.

Seus atores, Adam Driver e Scarlett Johansson, oferecem performances de cair o queixo, transparecendo amor e dor, respeito e condescendência, cumplicidade e egoísmo, às vezes na mesma cena, revelando como nossos sentimentos são mais complexos do que as nossas palavras. Se Laura Dern parece ligar o modo Renata – sua personagem de “Big Little Lies” – e se isto não é de todo mal, também revela algum descaso na composição, Ray Liotta tem uma performance intensa nos poucos minutos que está em cena. Já Alan Alda, nossa, partiu meu coração notar como evoluiu a doença de Parkinson do ator octogenário (83 anos), que, mesmo assim, não parou de atuar, tendo uma presença equilibrada no tom compatível com o tipo de advocacia familiar que prega.

Falhando em sua resolução, estendida além da conta e ironicamente preguiçosa ao alimentar-nos, de passagem, com as informações dadas no relato resumido de Nora durante uma festa, “História de um Casamento” machuca porque retrata a vida nua e crua. Não é o palco do teatro, onde Nicole tem dificuldade de chorar e quando o faz é de modo artificial, é o dentro de quatro paredes, local em que as lágrimas caem e queimam enquanto rolam em direção ao coração da memória do amor vivido e que não existe mais.

Crítica publicada durante a cobertura da 43. Mostra Internacional de Cinema em São Paulo

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