“Nem acredito que a infância acabou”. Bem que esta frase poderia ser aplicada à diretora, roteirista e atriz Greta Gerwig, que, com a sétima adaptação cinematográfica de ‘Adoráveis Mulheres’ (a segunda comandada por uma mulher), amadureceu além do alter ego revelado em ‘Frances Ha’ e ‘Lady Bird: A Hora de Voar’. É que, a partir do livro semiautobiográfico escrito por Louisa May Alcott no século 19, Greta encontrou a oportunidade para vocalizar aflições e inadequações femininas a partir dos dramas sofridos pela família March durante a guerra civil norte-americana, permitindo que o discurso narrativo seja a componente natural da criação daquelas jovens naquele particular período de tempo, sem privar o espectador da experiência calorosa e sensível que é acompanhar o desenrolar de suas vidas.
A independente Jo (Ronan, alçada à condição de alter ego de Greta) vende contos em Nova Iorque para ajudar a pagar as contas de sua família; Meg (Watson, esforçada, mas apática) casou-se com o caridoso professor John (Norton), incapaz de manter o padrão de vida que ela desejava quando era mais nova, até porque ser um professor desvalorizado não é ‘privilégio’ brasileiro; Amy (Pugh) passa a temporada com a tia (Streep, aproveitando cada minuto em tela, como ao ressaltar as sílabas de engajed – noiva), pintando quadros que não atingem a perfeição por ela desejada enquanto espera para se casar com um marido rico, que pode ser o amigo de infância Laurie (Chalamet, repetindo o papel do jovem rico e inconformado); por fim, a caçula Beth (Scanlen) permanece com a mãe (Dern, doce), na casa humilde e aconchegante onde fora criada e para onde retornamos constantemente em flashbacks que revelam a vida das March quando eram adolescentes e aguardavam o regresso do pai (Odenkirk) da guerra. Uma “família decadente”, no aspecto financeiro somente, mas que ensinou às filhas valores nobres que dinheiro algum pode comprar, o mais importante dele a certeza de que as irmãs têm umas as outras.
Mulheres incapazes de serem simplificadas com justiça com frases simples, como o crítico tolo que vos escreve tentou realizar no parágrafo anterior. Tome Amy, por exemplo: nosso impulso seria de enxergá-la como uma anti-heroína em comparação com o idealismo de Jo, dada sua predisposição em arranjar um noivo que lhe proporcionasse o conforto econômico que jamais teve, à custa do amor (próprio, principalmente). Contudo, o roteiro evita o erro de simplificá-la, tratando-a como uma mulher pragmática e consternada com o fato de que a sociedade da época não lhe oferecia alternativas, a partir da constatação de que sua tia só é rica como é porque jamais casou e, portanto, não entregou sua fortuna a ser administrada por seu marido, como exigia a lei. Em vez de ‘interesseira’, como tenho certeza que parte dos homens a chamará, Amy é uma trágica sobrevivente apta a abrir mão da (pouca) alegria que lhe resta em favor de seu família. E Florence Pugh (quiçá a melhor atriz a debutar em tempo recente, com a sua ‘Lady Macbeth’) é apta a equilibrar a personalidade mimada da adolescência com o da mulher adulta, ciente de em quem se transformará quando aceitar o pedido de casamento de quem não ama.
O amor familiar, a propósito, é uma componente determinante na narrativa, estabelecida no olhar cúmplice e afetuoso dirigido ao cotidiano, revelando como a aventura das March é o fortalecimento do vínculo umas com as outras e destas com a própria feminilidade. E Greta revela admiração e respeito por suas heroínas e empatia por seus obstáculos a ponto de isto transparecer, sem esforço aparente, ao público. Onde poderia haver pieguice desmedida, há sentimentos autênticos e com que nos relacionamos com facilidade. Até mesmo sequências como a dança em câmera lenta de Jo e Laurie revelam a percepção doce que Greta tem da juventude que está prestes a ser subtraída daquelas jovens, estabelecendo o contraste visual com o baile de que Meg participe e onde os participantes trajam preto, como se estivessem condenados ao luto de um casamento arranjado.
De rimas iguais a esta, a narrativa está cheia e todas bem articuladas na estrutura narrativa, méritos do montador Nick Houy. Sua montagem remissiva associa passado e presente com sensibilidade: enquanto Jo caminha a sós, da esquerda para a direita, por entre a fotografia gélida de Yorick Le Saux, no instante seguinte ela e irmãs caminham no sentido contrário e, apesar da neve castigante, a imagem é de que sua sororidade aquece o inverno. De forma parecida, a viagem à praia das irmãs e após de Jo com Beth e o despertar daquela enquanto zela o sono desta última em dois momentos exibem uma tenacidade visual que é irresistível em sua dramaticidade.
Por se tratar de uma obra de época, os figurinos da vencedora do Oscar Jacqueline Durran e o design de produção do duas vezes indicado ao Oscar Jess Gonchor chamam atenção em como evidenciam a situação financeira da família, a partir da simplicidade de uma costura mal feita ou de um café da manhã solidário. E, por entre a técnica irrepreensível e atuações ótimas, a certeza de que o papel da mulher na sociedade sempre precisou ser conquistado a unhas e dentes de homens que eram incapazes de propor salários iguais e negociar de forma justa. Mais fácil quando a raiz familiar é sólida em lecionar valores humanos, além daquela dimensão material afeta à gênese da sociedade capitalista.
Ainda que escrita há mais de um século, ‘Adoráveis Mulheres’ permanece contemporânea, infelizmente, e atemporal em como ressalta que, às mulheres, basta perseverar na luta por igualdade e respeito com a arma que possuem: o feminismo. Não deixa de ser, portanto, um filme ideal para coroar o movimento #MeToo.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.