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O Escândalo

O Escândalo

108 minutos

Quando a crítica condena a escalação de um diretor do sexo masculino para comandar uma produção muito importante ao sexo feminino, parte do público parece não entender como, em alguns casos, o gênero de quem está detrás das câmeras importa (o mesmo raciocínio também pode ser estendido à etnia ou orientação sexual). Não quero afirmar, com isto, que homens não tenham empatia para dirigir produções acerca do que é ser mulher, mas somente estressar o óbvio: mulheres entendem mais sobre o que mulheres enfrentam no cotidiano. “O Escândalo” é um bom exemplo disto, diante da incapacidade de seu diretor, Jay Roach, em compreender o aspecto paradigmático e educativo dos fatos que culminaram na demissão de um dos homens mais poderosos da Fox News, o asqueroso predador sexual Roger Ailes. Pelo contrário, em vez de conferir a relevância e dramaticidade que a história exigiria para honrar suas heroínas e vítimas, Jay acredita que uma abordagem ao estilo “A Grande Aposta” ou “A Lavanderia” (comédias satíricas sobre homens inescrupulosos do mercado financeiro) seria apropriada ao terror sexual que as mulheres sofrem diuturnamente. Uma decisão artística que, desconfio, mulher nenhuma cometeria.

Entretanto, Jay não é somente equivocado ao decidir qual o tom narrativo enquanto Megyn Kelly (Theron, irreconhecível em uma maquiagem merecedora de prêmios) conversa com o espectador quebrando a quarta parede, vestida com as cores da bandeira norte-americana. Ele é também inapto em conciliar as três histórias concorrentes (fora a de Kelly, os dramas vividos por Gretchen Carlson e a fictícia Kayla Pospisil, respectivamente Kidman e Robbie), que, apesar de funcionarem isoladamente, são mal articuladas entre si a ponto de não funcionarem bem no inevitável momento em que se encontrarão. Parte da responsabilidade deve ser atribuída ao roteirista vencedor do Oscar Charles Randolph (deixo vocês adivinharem por qual filme… uma dica: citei acima), que, ao empregar a personagem Kayla como instrumento para revelar, explicitamente, o assédio sexual dentro da Fox News, perde a chance de amadurecer os dois terços restantes da trama. Ora, não existe mistério na sujeira, no inconformismo e no sofrimento em ser vítima de violência sexual senão a própria exploração deste pesadelo. Mesmo assim, Kayla só não é sinônimo de chover no molhado porque Margot Robbie é uma atriz competente em expressar calada tanta dor em uma das sequências mais angustiantes e revoltantes que você assistirá nos próximos meses.

Lendo o que escrevi até então, a sensação é de que eu não gostei do filme. E, apesar das (muitas) ressalvas, Charlize Theron, Nicole Kidman e o reflexo da trama na corrida presidencial de Donald Trump auxiliaram em por a narrativa em patamar favorável. A relação entre os casos de assédio atribuídos ao presidente dos Estados Unidos, encadernados em uma edição mais espessa do que a Bíblia professada aos domingos por seus sectários, e a maneira com que este ataca Megyn com mensagens ofensivas em sua rede social, alimentando seu rebanho virtual odioso e autorizando-os a realizar o mesmo, são indicadores de como um ambiente social e corporativo pode ser contaminado por comportamentos tóxicos mais e mais violentos. Não demora para que a fofoca peçonhenta de como “mulheres não aceitam piadas” logo vire uma letra escarlate costurada na reputação de quem não aceita ser enxergada como objeto para deleite de quem está no poder. Na mesma proporção, um toque no joelho e uma cantada infeliz evoluem em beijos forçados e situações constrangedoras e degradantes que demandam o silêncio de mulheres e homens que fecham os olhos – alguns, covardemente, para proteger seus empregos – ou que não enxergam por detrás das persianas oportunisticamente fechadas.

É o reflexo de uma corporação midiática que prefere planos abertos para evidenciar as pernas de suas apresentadoras e em cujo camarim estas vestem corseletes, enchimentos e toda sorte de artifício para agradar seu chefe (“a televisão é visual”, afirma Roger), ou cuja linha para denúncia anônima é monitorada por ninguém menos do que o próprio agressor. Por este ângulo, Jay Roach é melhor sucedido em inserir, explicita ou implicitamente, instantes em que percebemos as atitudes de Roger (Lithgow, também irreconhecível) e os mecanismos de defesa das vítimas: uma é consumida pelo sentimento de culpa por acreditar ser responsável pela retórica sexista; outra opta por sentar no sofá em posição mais distante de onde estava no início da cena; há quem desligue o microfone com o receio fundado de estar sendo vigiada; ou quem esconda um porta-retrato ao descobrir que, apesar das mudanças anunciadas, tudo permanecerá do mesmo jeito no final das contas.

Neste sentido, Jay Roach acerta (de novo, vejam só) ao apostar em zooms e aproximações que criam um ambiente paranoico dentro da redação da Fox News, estabelecendo também seu jogo de ação e reação que realça a atuação do excelente elenco. E enquanto Nicole Kidman enfrenta o comportamento não professional da emissora engolindo as lágrimas que brotam nos olhos e mantendo-se firme e íntegra em seu caminho, Charlize Theron é cirúrgica em situar-se no meio termo entre a empáfia do silêncio e a empatia para com suas colegas, sem esquecer de seu papel nuclear na acusação. Seu olhar evidencia como sua altivez e seu distanciamento são instrumentos para ignorar a responsabilidade de quem preferiu ascender na carreira a botar a boca no trombone no momento oportuno, e se a atriz não é a favorita ao Oscar, é somente porque o roteiro não lhe proporciona mais oportunidades de se estabelecer tridimensionalmente. Seu escopo familiar é superficial e sua batalha midiática contra Donald Trump acaba varrida debaixo do tapete quando conveniente ao roteiro.

Tendo como momento mais marcante aquele inserido desastradamente no meio da narrativa, quando mulheres reais depõem contra Roger Ailes, “O Escândalo” ainda é irônico ao revelar a diferença entre a indenização paga às vítimas de assédio sexual em comparação com o acordo feito entre a emissora e os agressores, em uma prova indiscutível de que o crime compensa.

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