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Um Lindo Dia na Vizinhança

Um Lindo Dia na Vizinhança

109 minutos

Por 31 temporadas, o apresentador infantil Fred Rogers vestiu seu cardigã até à altura do nó da gravata, calçou seus tênis confortáveis e convidou seus espectadores à terra do faz de conta, onde debatia os tópicos sérios que os pais têm receio de conversar com seus filhos (morte, doença, frustração). Tema de um documentário biográfico afetuoso e cativante (“Won’t you be my neighbor?”), Fred Rogers é, agora, o coadjuvante de “Um Lindo Dia na Vizinhança”, da mesma diretora Marielle Heller de “Poderia me perdoar?”, e não poderia haver decisão criativa mais coerente do que colocá-lo no segundo plano, mesmo porque Fred sempre se pôs na posição de facilitador do desenvolvimento da inteligência intrapessoal dos espectadores, na tarefa de ensinar a lidar com os próprios sentimentos em uma espécie de terapia televisiva e coletiva.

Assim nasceu sua amizade com o jornalista Tom Junod, em quem se inspirou o fictício Lloyd Vogel (Rhys, competente apesar de preso em um arquétipo previsível). Contratado para redigir uma matéria sobre Fred Rogers (Hanks, indicado ao Oscar) na mesma época em que questiona sua vocação parental à luz da relação conflituosa com o pai (Cooper, tocante), Lloyd descobre, nos encontros com o apresentador, um ambiente seguro para verbalizar seus ressentimentos e aprender a conviver com o fardo de haver enfrentado, sozinho, a morte da mãe, reconhecendo no processo que não existe este mito de “vida normal sem dor”.

A estrutura da narrativa aparenta ser tola, talvez infantil, como à primeira vista o programa de Fred Rogers, responsável também por dublar as marionetes puídas que matinha consigo desde sempre como amigos de infância. É dentro deste mundo que conhecemos Lloyd a partir do figurino sóbrio, olhos fundos, barba por fazer e cabelo desarrumado, reflexos óbvios de sua personalidade em frangalhos. Do outro lado está o doce, gentil e monocórdico Fred, cujo desejo de mudar o mundo já começa na ternura com que nos acolhe com um “Olá, vizinho”, encarando a câmera como se esta fosse uma criança inocente, curiosa e ávida por atenção. Não precisa ser matemático para compreender como este orientará aquele na arte do perdão, e se parece piegas, Fred também não tinha receio de soar careta quando se colocava diante de quem quer que fosse, olhando-o além dos olhos, como faz conosco durante o minuto de silêncio em que quebra a quarta parede, com sutileza, a fim de que Tom Hanks nos convença de que não estamos mais diante de uma atuação milimetricamente fidedigna, mas de Fred Rogers reencarnado.

É quando percebemos que a simplicidade da narrativa não é demérito algum; é seu trunfo. A proposta de Fred Rogers – igual à de Marielle Heller – não é oferecer um desafio artístico ao espectador, porém revelar como não há fórmula mágica para lidar com fardos pesados que não inicie na empatia e no afeto genuíno. Fred não tinha vergonha de perguntar onde machucava e o fazia de modo direto, franco e disponível. É como se, naquela fração de segundo, não houvesse outro senão seu interlocutor, e a direção retrata este comprometimento através da ferramenta mais básica da linguagem cinematográfica: a definição do plano a partir da proximidade ou afastamento da câmera do sujeito, e note como as revelações mais íntimas e doloridas de Lloyd são ilustradas em closes não somente dele, mas de Fred, que participa ativamente da comunhão, instantes antes de Marielle optar pelo plano médio que devolve o bate-papo à informalidade irreverente.

Também não faltam elementos que fortaleçam o eixo da narrativa e tornem-na envolvente: a fotografia de Jody Lee Lipes mantém a lógica criativa e opta pelo contraste entre o ar soturno e pé no chão da realidade de Lloyd – cujo cotidiano é sobremaneira noturno, ressalte-se – e o cenário colorido e artificial do programa de Fred, mimetizado rigorosamente por Tom Hanks, que substitui sua vocalização anasalada em troca da entonação baixa e constante, adicionando a sua composição detalhes que auxiliam na construção do personagem: a mão treme enquanto segura uma xícara de café e as mesmas mãos vão ao encontro das costas doloridas ao término do programa, como um gesto automático de quem estava caminhando em direção ao final da vida (Fred viria a morrer logo antes de completar 75 anos, de um câncer no estômago não tratado). E o que dizer do plano derradeiro do personagem, que evidencia no acorde dissonante tocado no piano sua própria humanidade?

Ao estimular a reflexão a partir da singeleza e da pausa silenciosa na sociedade de informação e de ruídos que começaria a prezar o imediatismo e os excessos, Marielle Heller transformou “Um Lindo Dia na Vizinhança” no melhor perfil biográfico que poderia haver de Fred Rogers. Um menos dedicado ao homem, embora não faltem insights a respeito de sua vida íntima, e mais preocupado em replicar seu trabalho de vida a partir do exemplo prático e emocionante do jornalista convertido em amigo, digo vizinho, tal como todos nós viraríamos caso tivéssemos esta mesma oportunidade.  

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