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Entre Realidades

Entre Realidades

104 minutos

Fantasia e realidade são conceitos turvos para quem enfrenta a depressão nesta dramédia surpreendente

“Sei que é loucura, mas parece real para mim”, Sarah explica ao médico que lhe atende e que resumiria o estágio agudo da depressão por que tem passado, a qual nega, embora confirme casos de doenças psíquicas na família. A condição é tão intensa que provoca o rompimento com a realidade ao seu redor a ponto de acreditar nas ilusões estapafúrdias que fabrica e que poderiam haver saído de uma ficção-científica B. Entretanto, a princípio, “Entre Realidades” aparenta ser o típico indie norte-americano com a assinatura da produtora dos irmãos Duplass, uma em que a acanhada e solitária protagonista tenta encontrar seu lugar no mundo, individual, social e romanticamente, que não seja o sofá onde assiste às reprises da série Purgatório. Sua colega de trabalho, Joan (Shannon), oferece-lhe presentes e palavras de carinho; sua colega de quarto, Nikki (Ryan), tenta tirá-la a inércia apresentando-a ao amigo de seu namorado; seu padrasto, Gary (Reiser), presenteia-a com dinheiro e a nós com informações úteis para compreender seu estado emocional. No ínterim, também há as visitas ao haras onde orienta uma adolescente, sob o olhar reprovador e desconfiado dos criadores, a conduzir a égua Willow, que montava há algum tempo. Todos, peças do quebra-cabeças que auxiliarão a formar a empatia do espectador de múltiplas maneiras.

Joan, p. ex., assume a posição de figura materna para Sarah, que perdeu sua mãe ao suicídio motivado por depressão. Seu esforço em estimular a protagonista e sua tentativa de construir identificação a partir de elementos casuais, como a ancestralidade de seu sangue, ficam ainda mais evidentes pela atuação adocicada e, desculpe repetir-me, maternal de Molly Shannon. Já Nikki evita prestar atenção aos sintomas evidentes da depressão da colega de quarto, afundada na inércia do sofá tentando reconectar-se com a memória da mãe, ou mesmo de seu sonambulismo, que não deveria ser ignorado por não passar despercebido. E o conselho dado por estas de como estancar um sangramento nasal escancara a diferente percepção que tem de Sarah. Temos também Darren (Gubler), com o qual aquela acredita poder confidenciar suas ideias irracionais ou quiçá psicóticas por compartilhar o mesmo nome do personagem favorito de sua série. Darren até lhe oferece a mão em ajuda, mas não com a empatia necessária.

Com inteligência, o conceito central da narrativa começa a ser insinuado pela direção de Jeff Baena, que co-escreveu o roteiro ao lado da atriz e protagonista Alison Brie, no plano inicial em que Sarah corta um tecido azul, gesto bastante simbólico da fábrica da realidade sendo partida em duas. O real e o imaginário. Às vezes, não exige muito de nossos neurônios separar este daquele; noutras, a narrativa intencionalmente abre margem à desconfiança. De modo visual, isto esta presente em como a narrativa divide-se entre o azul, a cor mais predominante no cotidiano de Sarah, e o laranja pêssego – que lhe traria boas energia, de acordo como uma cliente – e que também é a cor do vestido que sua avó usava no porta-retratos.  A própria característica dúbia da narrativa também não foge ao episódio de Purgatório, em que Agatha, a estrela da série, confronta duplos ou doppelgangers introduzidos por Hades. Sim, o deus do inferno.

Dá para perceber que Sarah não é a narradora mais confiável para encontrarmos respostas, que não vêm da maneira que desejamos, pois qual a melhor interpretação, se metafórica ou literal, está a cargo do público. Assim, Alison Brie oferece sua melhor interpretação ao evocar tamanha tristeza detrás da falsa normalidade de quem não sabe estar doente e requerer ajuda. A incapacidade de se relacionar – a cena envolvendo a professora de zumba é dolorosa por ser imperceptível, para esta, a tentativa de conexão frustrada – ou de, em vez de abaixar a cabeça, engrossar sua voz contra os nãos que escuta – como acontece no haras – evidenciam tamanha fragilidade que é difícil não se encantar com o comentário doce e até infantil de que está namorando. E se os 80 minutos anteriores pisavam, solidamente, no mundo real, então os 20 minutos finais penetram de cabeça no universo Lynchiano (em alusão a David Lynch, diretor de “Cidade dos Sonhos”). E aqui, peço que parem de ler sob pena de spoilers. Avisados, ok? Enquanto Sarah decide se é o clone de sua avó, transportado no tempo e/ou abduzido por alienígenas, caminha por entre os canos que havia requerido conserto ou passa em frente ao armarinho com Willow, atraindo a atenção de Joan – pista aos fãs de teorias da conspiração –  ou entreouve o mendigo do lado de fora da loja citar o mesmo satélite que os alienígenas utilizaram para que as civilizações do passado construíssem pirâmides. Tudo isto conduzindo a metáfora da ascensão, que pode significar a aceitação da própria loucura por parte de Sarah, seu suicídio ou… sua abdução.

Afinal, não importa qual seja a forma com que você enxergue a narrativa, a trama é mesmo a respeito da inabilidade de comunicação e escuta empática. Pois se Sarah não verbalizava, com a mesma honestidade com que tentava convencer-nos de suas teorias de filme-B, a dor pela perda da mãe, nem tampouco dimensionava o buraco que esta deixou, assim também aqueles ao redor não ouviam seus gritos mudos mas ensurdecedores, quanto mais escutariam todo o restante.

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2 comentários em “Entre Realidades”

  1. Acho que percebi a mesma coisa quando assisti. Percebi que ela precisava de ajuda mas as pessoas não viam ou não queriam ver, ao mesmo tempo não sei se as pessoas não sabiam como ajudar… Acho q não estamos preparados para ajudar alguém nessas condições. Ao terminar de assistir o filme não sabia bem se tinha gostado. Mas ao ler sua crítica passei a olhar de forma mais empática.

    1. Marcio Sallem
      Marcio Sallem

      Que bom, Débora. Parece-me ser este o tema central: comunicação e ‘escutação’. Enquanto escrevia, também comecei a gostar mais do filme do que quando havia acabado de terminar.

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