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Malmkrog

Malmkrog

200 minutos

Texto publicado durante a coberta da 44ª Mostra de Cinema em São Paulo

A proposta em forma de manifesto do diretor Christi Puiu (Sierraneva) em Malmkrog é provocadora ou mesmo radical quando em contraste com o mundo contemporâneo, em que parte relevante do tecido da sociedade despreza as bases literárias, filosóficas e teológicas que a moldaram. É a prova de um analfabetismo funcional deliberado, um motivo de orgulho de quem comemora nunca haver lido um livro, combinado com a alienação incurável de quem crê nas palavras ditas inquestionáveis do líder que houver eleito: seja político, religioso, sindical, familiar etc. Por 3 horas e 20 minutos, o diretor encena, ao longo de um dia, a guerra intelectual disputada entre a nobreza russa sediada na França, intercalada com a movimentação do corpo de serventes da casa e a animosidade em torno da saúde do patriarca.

Apesar de não ter a bagagem intelectual indicada para penetrar integralmente na penumbra densa e conflituosa construída só com o auxílio de diálogos, não me faltaram oportunidades para apreciar a troca inteligente e respeitosa de temas, que atesta a inteligência do também roteirista Christi Puiu e a capacidade de encontrar refúgio em ideias, em vez da ação. É mérito do texto tornar exemplares do narcisismo elitista e pretensamente monopolista da virtude, moral e religião, em personagens ou deidades por quem não estabelecemos aversão, pois viram meros avatares filosóficos e políticos de Sócrates ou Platão a Slavoj Žižek ou Judith Butler: Olga, a justa idealista; Nikolaj, o cego pragmático; Ingrida, a beligerante reacionária; Edouard, o bufão da corte, e Madeleine, a melhor elástica por ser quem flui mais livremente nas ideias daquele debate.

E, por mais que não criemos nenhum laço de empatia por esta nobreza alérgica a trabalhos manuais atribuídos aos serventes comandados por István, que oprime aqueles debaixo de sua hierarquia, o texto termina por adquirir a condição de personagem dentro da narrativa. É um aspecto inusitado, pois à medida que o diálogo ratifica a personalidade de quem o interpreta, este também confere àquele materialidade. Assim, o diálogo não somente caracteriza quem os declama; vira verbo nesta estrutura narrativa, iniciada a partir da discussão de onde provém a maldade, se de Deus, do diabo ou do próprio homem, para depois se debruçar sobre a defesa, tolerância ou repúdio da guerra dos “civilizados” contra os “bárbaros”, antes de flertar com a ideia de introduzir temas contemporâneos (ex. a ideia do bloco solidário europeu como instrumento de enfrentamento da ameaça proveniente dos países asiáticos, quer dizer, a defesa de valores culturais eurocêntricos, indispensáveis àquele grupelho minúsculo).

Com um estilo teatral, em que a câmera é um componente observador e desinteressado em atrair a atenção, mesmo que dirija o olhar do espectador enquanto se movimenta de modo discreto para acompanhar um personagem, a narrativa impressiona pela compostura dos atores, cujas hesitações ou equívocos imperceptíveis na reprodução dos diálogos integram o corte final, conferindo-lhe uma aura naturalista quando esta parecia carente, em razão da educação polida dos personagens. Veja que não há interrupção do fluxo de ideias até a passagem de bastão a quem se inscrever para ser o interlocutor seguinte, tendo Puiu ideias sutis de composição com que pretende concordar ou não da argumentação. Tome Ingrida, ex., recolhida fora de campo, enquanto realiza a leitura de uma carta recém recebida.

Além disto, Puiu reforça a incapacidade dos personagens em interromper a verborragia – mentiria se não afirmasse ser cansativa – a partir de como confere indeterminação a este tempo delimitado. Quanto mais concreto é este dia de inverno, mais abstrato parece ser, sobretudo pela isenção ou mínima suscetibilidade do debate aos acontecimentos transversais e essenciais à família e à casa. É no mínimo irônico serem os empregados os responsáveis por estabelecerem, a partir do horário de cada refeição, a quebra no raciocínio daqueles “deuses do Olímpio”, que não atingiriam o consenso nem se suas vidas dependessem disto.

Pois o que Malmkrog aposta não é na capacidade do espectador em conhecer ou ao menos absorver uma dezena de textos clássicos enraizados no roteiro, mas perceber, no manifesto, a ideia presente de que há poucos que decidem o destino de muitos. Se não tomarmos esta narrativa como estímulo para sairmos da frente dos smartphones e recuperarmos o tempo perdido em favor da literatura, então, como sociedade, continuaremos meros empregados perdidos no segundo ou terceiro plano e mudos às questões essenciais.

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