Por Alvaro Goulart
Na Itália do pós-guerra, Fellini conta a história de Gelsomina (Giulietta Masina), uma jovem que é entregue por sua mãe para o exibicionista mambembe Zampanò (Anthony Quinn), um homem violento. Com La Strada, o diretor conquistou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro*, seu primeiro na categoria.
Por ter sido lançado há mais de meio século, A Estrada da Vida já coleciona artigos e cultuadores. Sendo assim, o que eu poderia colocar nesse texto que possa trazer de novidade sobre esse filme? Acho que somente o meu olhar e a minha experiência em revisitá-lo. Talvez esse seja um dos meus filmes favoritos do diretor e, por mais que exista uma luta entre os acadêmicos em classifica-lo ou não como um exemplar do neorrealismo italiano, gosto de encará-lo como um filme realista que se despe de uma textura áspera e traz um toque poético na maneira de contar uma história.
No início, nossos dois personagens principais nos são apresentados através de um evento trágico: a notícia da morte – suspeitosamente não detalhada – da irmã de Gelsomina. Para nós expectadores, as expressões de Zampanò logo provocam antipatia. Mas apesar disso, a jovem aceita seu destino com a esperança de se tornar uma artista.
Masina nos entrega uma figura cativante. Gelsomina é o retrato da inocência infantil. Em contrapartida, o personagem de Quinn (O Zeus do seriado Hércules, para os que comungam da minha geração) é rude e de caráter questionável. Este representa a bestialidade humana ou a própria materialização do homem (tóxico). Zampanò é um Uomo Forte, um artista que não tem nada de artístico. Sua apresentação se limita à demonstração da força bruta. Enquanto o mesmo expande os pulmões e os músculos peitorais para se libertar de correntes, sufoca e aprisiona a pequena mulher em uma relação de dependência e controle. Em um dos momentos mais memoráveis do filme, a câmera desloca nosso olhar da performance escapista do troglodita para a visão de nossa protagonista enclausurada na carroça.
Fellini conseguiu homenagear um de seus ídolos nesta história. A candura agridoce de Gelsomina é claramente inspirada pela figura do Vagabundo, de Chaplin – Até o chapéu coco está presente. Extrapolando a tela do filme, descobri que “Gelsomina” é o equivalente italiano para a flor jasmim, pequena e delicada.
As figuras circenses estão também presentes nesse road movie. Richard Basehart interpreta o palhaço equilibrista Il Matto. Este que se diverte caçoando de Zampanò é também um ponto de equilíbrio entre a alegria infante e a malícia masculina. Ele também será responsável por pavimentar a jornada dos outros dois personagens.
A morte da inocência – e da lucidez – de Gelsomina se dá pelo testemunho do assassinato de seu amigo em um ato de vendetado brutamontes. Seu estado de trauma faz com que o domínio do verdugo dê lugar ao seu abandono. Com o passar do tempo, vemos um Zampanò já não mais viril. Ao saber do fim trágico de sua “protegida”, o ogro se depara com os primeiros sinais de remorso e busca refúgio em cálices de vinho. Ao tentar descontar sua cólera nos homens da cantina, Zampanò sai derrotado e em um último ato de demonstração de força com um tambor de latão, sua mediocridade se exacerba. Os últimos momentos do leão velho são de solitude numa praia. A tentativa frustrada de lavar seus pecados com a água salgada antecede seu choro arrependido em uma rima visual com os últimos momentos de sua vítima.
A Estrada da Vida nos transporta em uma jornada pelo interior de uma Itália empobrecida do pós-guerra. Apesar disso, a narrativa de Fellini é atemporal. É sobre como a ferocidade do mundo pode estraçalhar a mais pura das almas. E ao mesmo tempo uma reflexão sobre a possibilidade de redenção da mais bruta das feras. O olhar onírico de Gelsomina sobre a vida muito provavelmente era compartilhado pelo diretor. O humanismo de seu filme, mesmo que calçado na tragédia, soa esperançoso. Acreditar na mudança do mundo, na cura, na renovação talvez nos devolva o brilho no olhar que Gelsomina um dia possuiu.
*Em 2020, a categoria passou a se chamar “Melhor Filme Internacional”
JORNALISTA E PUBLICITÁRIO. Cresceu no ambiente da videolocadora de bairro, onde teve seu primeiro emprego. Ávido colecionador de mídia física, reune mais de 2 mil títulos na sua coleção. Já participou de produções audiovisuais independentes, na captura de som e na produção de trilha musical. Hoje, escreve críticas de filmes pro site do Cinema com Crítica e é responsável pela editoração das apostilas do Clube do Crítico.