Desde os créditos iniciais vistos como se por um espelho, a diretora, corroteirista e coprodutora Nia DaCosta (de ‘Passando dos Limites’ e, em breve, ‘The Marvels’) prepara o espectador para o símbolo recorrente e também o fio condutor da narrativa. No interior da trama e em torno da experiência de ‘A Lenda de Candyman’, a arte assume o papel de refletir a realidade, enquanto terror que canaliza a violência secular sofrida pela pessoa negra americana. Se o artista McCoy (Abdul-Mateen II) reflete a realidade que o picou e o tem devorado de dentro para fora, a partir de como suas obras resgatam o inocente assassinado pela polícia em razão da cor de sua pele, o espectador também tem a chance de refletir, desacompanhado do fetiche que pareceria obrigatório neste tipo de filme.
É que Nia DaCosta cutuca a representação literal da violência – igual fez a série ‘Them’. Com exceção do momento inicial, em que estabelece as regras de Candyman e portanto precisa retratar de mais perto a violência, a diretora se afasta dela para retratar o ponto de vista de quem é um espectador. Assim, somos posicionados no interior do cubículo do banheiro feminino ou no banco de trás do carro de polícia, ou então nos afastamos do interior do apartamento para o lado de fora, a fim de testemunhar à distância a violência da narrativa. A diretora reserva o conteúdo explícito às cenas animadas, introduzidas no prólogo, interlúdio e epílogo, em preto e branco e expressionistas, como delimitadores dos capítulos de uma história amarga desde o primeiro negro ser arrancado de seu lar até chegar escravizado na América.
Falei muito sobre a violência (e falarei mais), e tardei a comentar que ‘A Lenda de Candyman’ é uma espécie de soft reboot, ou seja, tanto uma sequência do original quanto meio de reintroduzir o mito do personagem-título ao público contemporâneo. Enquanto a versão de 1992 trazia o componente de terror racial na origem de Daniel Robitaille e das violências que sofreu por haver se apaixonado por uma mulher branca, as sequências trataram de transformá-lo em mais um assassino em série do slasher. Já nesta versão, que tem McCoy e Brianna (Paris) como companheiros que procuram se estabelecer no concorrido mercado artístico da Chicago gentrificada, Candyman assume a forma de um mecanismo de enfrentamento contra a violência diuturna sofrida pela comunidade negra.
Por esta razão que as vítimas de Candyman são pessoas brancas, e o roteiro também assinado por Jordan Peele (de ‘Corra!’ e ‘Nós’) pontua o momento exato em que aqueles desafiam a própria sorte. Aqui, invocar Candyman chamando seu nome no espelho não é apenas uma brincadeira para testar quem é ou não corajoso, mas equivale ao racista que desafia a lei, moral e escrita, ao violentar o próximo em razão da cor da pele. E Nia DaCosta deixa bastante explícito este enfoque após uma adolescente de raízes asiáticas desistir de invocar o bicho papão. Isto porque não vale a pena, na visão da diretora, responsabilizar este grupo minoritário ou a comunidade LGBTQ, representado no namorado gay de Troy, irmão de Brianna, por violências que não cometeram sistematicamente.
Entretanto, para que a função social da arte seja destacada, a narrativa precisa ser envolvente. Sem o meio (o filme), a finalidade se perderia. Isto não acontece em razão da habilidade de Nia DaCosta em mesclar um terror de que estava saudoso, um que combina o mistério e a repugnância e rejeita o susto fácil. Candyman é onipresente nas superfícies reflexivas sem que a diretora chame a atenção do espectador para isto, seja com o movimento de câmera ou lente, seja com o corte. Ao mesmo tempo, a deterioração de McCoy rivaliza com o que David Cronenberg realizou em ‘A Mosca’ em mostrar uma feição grotesca, e da qual virei o rosto algumas vezes, a fim de externar o sentimento indescritível de quem absorveu tamanho histórico de violência.
Já a marcante fotografia de John Guleserian enxerga os arranha-céus de ponta cabeça como símbolo desta metrópole que existe na neblina da pretensa grandiosidade que esmaga os seus habitantes. A maneira como a fotografia realça a escuridão e a presença fantasmagórica de Candyman acentua a atmosfera aterrorizante que agonia e sufoca, igual deve ter ocorrido com as vítimas da violência policial relembradas na narrativa. É por isto que as cores azul e vermelha aparecem sugestivamente como figurinos de duas curadoras de arte ou como cores que piscam à distância na forma de duas sirenes policiais.
Com isto, ‘A Lenda de Candyman’ intensifica o teor racial do original e o atualiza para os dias de hoje, enquanto revela que, ainda que o personagem-título seja o autor da dezena de mortes encenadas, ele é menos culpado do que aqueles que o transformaram neste monstro.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.