Por Alvaro Goulart
“Quando se olha muito tempo para dentro do abismo, o abismo olha de volta para dentro de você”, disse Nietzsche.
Travis (Harry Dean Stanton) vagou pelo deserto por quatro anos até ser encontrado por seu irmão. Mas o que o fez partir nesse autoexílio está relacionado com a sua próxima jornada, contada nesse road-movie de Wim Wenders. Trazendo questionamentos existencialistas, o diretor alemão nos proporciona uma experiência cinestésica, com fotografias belíssimas sob o riff de guitarra de Ry Cooder. Nada mais complementar às paisagens que remetem ao faroeste de John Ford do que a melancolia dos slides em uma guitarra de blues para nos fazer sentir a aspereza da desolação.
A estrada do road-movie diz mais sobre si do que sobre o asfalto e as paisagens; O caminho sempre mais valioso que o ponto de chegada. O road-movie por si só marcara a mudança na forma de fazer cinema com a Nova Hollywood. Seus anti-heróis sem destino definido cruzavam os Estados Unidos carregando a contracultura pelo cinema dos anos 60 e 70. Então vamos deslumbrar o percurso do andarilho misterioso interpretado brilhantemente por Harry Dean Stanton.
Quando Walt (Dean Stockwell) reencontra seu irmão até então desaparecido, Travis está maltrapilho e em estado catatônico. Seu olhar é vazio, sua boca emudecida. Walt se vê na missão de reunir Travis ao filho de sete anos, Hunter, criado por ele e sua esposa como próprio. E essa missão se demonstra um tanto difícil devido à dificuldade de comunicação e retorno à consciência de Travis, além de seu constante escapismo. O simples reflexo no espelho é motivo suficiente para fugir caminhando para lugar nenhum, ou melhor, para um lote de terra em Paris – Não a da França, mas a do Texas. Um retorno à um passado distante ou a um paraíso idealizado.
Ainda na primeira parte do filme vemos um processo de renascimento de Travis. O retomar da linguagem é marcado por escolhas que remetem ao estado de infância: o sentar-se no banco traseiro do carro, ou um riso bobo e sem justificativa em uma mesa de restaurante.
O dirigir o carro para Travis poderia ser o início de uma tomada da responsabilidade e do próprio rumo ainda que vacilante. Quando confrontado por estarem fora da rota, Travis deixa claro que pode voltar para a estrada quando quiser. O primeiro marco alcançado é o cruzar o trilho de trem, que faz o primeiro grito de alerta com seu apito.
Com a chegada dos irmãos, Hunter (Hunter Carson) é reapresentado ao pai. O estranhamento do menino é óbvio e justificado. Afinal, quem é aquele homem que se sente à vontade apenas na varanda ou lavando os pratos sozinho à noite? E Hunter, vestido com sua jaqueta da Nasa, é também responsável por trazer de volta Travis do espaço sideral de sua mente. Ao querer retomar a relação com o filho, Travis ousa até se fantasiar de “um pai de verdade”. E essa reaproximação contém risos e tropeços no caminho.
Tendo sua cunhada lhe revelado que a mãe de Hunter ainda deposita dinheiro para o filho em segredo, Travis decide ir ainda mais fundo em seu passado e reencontrar Jane (Natassja Kinski). Na surdina, acompanhado de Hunter, segue em direção à agência bancária onde os depósitos são feitos. Pela primeira vez vemos, mesmo que de relance, a mulher que está presente em Travis ainda que fora de campo.
Jane seria uma boneca numa casa de boneca. Mas na realidade do filme, ela é uma cabin girl. E Travis, em seu primeiro contato, se oculta como um cliente qualquer por trás de um vidro filmado. Ele só se revela quando também é possível revelar seus planos e também o passado que compartilham. E é aí que sabemos que a história de amor deu lugar ao ciúme e à violência – escapa da Paris de luzes e romance para a hostilidade acre do deserto do Texas. Nosso andarilho se exilou para conter o monstro que existia dentro dele. Ele não caminhara pelo vale da sombra da morte. Ele era a morte. E seu plano não seria o de reunir sua família, pois isso poderia devolvê-los ao risco de sua companhia. Travis deseja apenas devolver o filho à sua mãe. Afinal, ele enxerga a paternidade de seu irmão e cunhada tão reais quanto as paisagens impressas nos letreiros de estrada com que trabalham.
É curioso como Travis quer se afastar do monstro que foi outrora apesar da violência presente no seu plano. Sua vontade de reunir mãe e filho é impositiva. Ele retira sumariamente Hunter do lar e da família que estava familiarizado. Também obriga a maternidade à Jane afirmando que Hunter ficaria sozinho no quarto de hotel. Sua vontade se sobrepõe da mesma forma que seu rosto se sobrepõe ao de Jane no reflexo.
Mas a turbulência desse retorno fora anunciada pelo homem que grita aos carros na passarela e pela cor vermelha que pulsa ao longo do filme. Mais que a paixão pulsante, o vermelho é um sinal de alerta ao longo do filme. Não é à toa que nos deparamos com semáforos com o sinal vermelho piscando durante o filme. Algumas cenas, por outro lado, são marcadas com um filtro verde. Mas não é um verde brilhante e renovador. É um verde cadavérico, como o da sala do médico, onde Travis ainda é um cadáver vivo sendo examinado. O verde marca os momentos de solidão e distanciamento de Travis. Também estão presentes nos quadros, a tríade cromática composta pela cor branca, azul e vermelha; mais um ponto de aproximação de Paris e Texas, pela cor das bandeiras.
Travis se transforma em sua jornada ao passo que transforma as pessoas ao seu redor. O ser monstruoso que destruiu sua família não poderia voltar a ameaçá-la. E ele nunca conseguiria se separar desse ser que vive no abismo que Travis sempre será. Sendo assim, o viajante retoma sua jornada rumo a lugar nenhum. Ou para Paris, Texas.
JORNALISTA E PUBLICITÁRIO. Cresceu no ambiente da videolocadora de bairro, onde teve seu primeiro emprego. Ávido colecionador de mídia física, reune mais de 2 mil títulos na sua coleção. Já participou de produções audiovisuais independentes, na captura de som e na produção de trilha musical. Hoje, escreve críticas de filmes pro site do Cinema com Crítica e é responsável pela editoração das apostilas do Clube do Crítico.