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Beckett

Beckett

110 minutos

Por Thiago Beranger

Alfred Hitchcock é com toda certeza um dos diretores mais influentes de todos os tempos. Sua obra é tão fascinante que muito do que veio depois tem alguma inspiração nela, seja temática ou formal. No cinema contemporâneo isso não é diferente. Todos os anos são lançados diversos filmes que tem características hitchcockianas muito fortes. Recentemente, estreou na Netflix o thriller “Beckett” do jovem diretor italiano Ferdinando Cito Filomarino. É inevitável a comparação do filme com o clássico “Intriga Internacional” (1959) por conta da premissa que ambos possuem em comum: um homem que se envolve por acaso em uma trama política e passa a ser perseguido. A comparação, contudo, possui limitações claras, pois enquanto o clássico de Hitchcock insere isso em um contexto que brinca com uma “crise de identidade”, o lançamento da Netflix não sabe bem se quer tratar do trauma do protagonista, de conflitos sociopolíticos atuais ou de um simples jogo de gato e rato. Todas essas opções coexistem de forma nada harmônica, dando a sensação de que se tratam de vários filmes dentro de um só.

Beckett (John David Washington) e April (Alicia Vikander) são um casal de namorados que estão passando as férias na Grécia, em meio a um momento de muitos protestos por conta das medidas de austeridade fiscal adotadas pelo país. Para fugir das manifestações em Atenas, eles resolvem fazer uma viagem de carro pelo interior grego, onde sofrem um acidente: Beckett perde o controle sobre o carro, sai da estrada e colide com a parede de uma casa aparentemente abandonada. April morre na hora, mas seu namorado, ainda meio atordoado pela batida, percebe a presença de pessoas dentro do local. Ao ser confrontado pela polícia, Beckett revela o que viu e a partir daí passa a ser perseguido em uma caçada mortal ao redor do país.

O filme começa até interessante criando uma atmosfera de paranoia que dá a entender que algo não está certo entre o casal. Nos momentos entre eles há uma forte sensação de estranhamento, reforçada pelas atuações e pela ênfase que a direção dá a determinados gestos e olhares vindos principalmente de April, como se ela estivesse escondendo alguma coisa apesar dos diálogos amistosos e dos sorrisos. Essa sensação chega ao auge na sequência que antecede o acidente, quando o casal viaja de carro à noite em direção ao hotel onde vão ficar hospedados. O diretor posiciona a câmera dentro do carro, próxima aos rostos dos personagens com uma profundidade de campo bem reduzida, fazendo com que haja um senso de deslocalização. Não sabemos exatamente o que há em volta do veículo enquanto os dois conversam, até que planos externos revelam a estrada escura e sinuosa e anunciam o acidente. Toda essa sequência é muito bem trabalhada e gera expectativas que acabam não se concretizando.

Isso porque o filme abandona totalmente todo esse clima criado no início. Fica nítido que o estranhamento era apenas um artifício para ditar o tom de paranoia, mas sem nenhum fundamento factual. A dinâmica entre o casal e o remorso do protagonista, que o levou à beira do suicídio, são deixados de lado quando Beckett precisa se preocupar com a sobrevivência. A trama que se revela não tem nenhuma relação com o primeiro ato do filme, além do noticiário que anuncia a crise grega. A partir daí se inicia o jogo de gato e rato, que seria interessante, se não houvesse todo um background que o ofusca. As supostas razões dos perseguidores são apresentadas pela ativista Lena (Vicky Krieps) e colocam a trama no centro de uma disputa política entre a esquerda e uma direita fascista, que encontra paralelos na realidade europeia atual.

Essa questão é reforçada por um subtexto racial que está presente em segundo plano. Não parece ser por acaso que o protagonista seja um homem negro sendo perseguido pela força policial de um país inteiro, totalmente composta por homens brancos. Isso se justifica no fato de a Grécia ser um país predominantemente caucasiano, mas não deixa de ser simbólico. A própria descrição dos vilões como pertencentes a um partido fascista corrobora com essa interpretação e intensifica ainda mais o conflito vivido por Beckett.

Acontece que no final das contas o filme abandona mais uma vez todo esse contexto. Se tudo não passava de um pretexto para John David Washington correr, saltar, levar tiros, socos e pontapés de um lado para o outro, talvez fosse melhor concentrar o foco na ação ao invés de perder tempo introduzindo todo esse conflito sociopolítico. Ideias sobre a crise europeia, o intervencionismo estadounidense, a ascensão de grupos neofascistas e a dinâmica racial são jogadas de forma desorganizada. Essa necessidade de ambientar a trama em um contexto que atribua ao filme uma relevância social, sem que isso se efetive ou se aprofunde, só faz enfraquecer a narrativa e colocar a obra em um limbo onde ela não é exatamente nada do que se propõe. Não é um thriller político competente, não é um suspense romântico como dá a entender no início, não é um filme de ação interessante. É um trabalho com uma “crise de identidade” tão ou mais forte quanto a vivida pelo protagonista do já citado clássico “Intriga Internacional” e, nesse caso, a comparação não é nada elogiosa.

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