Esta crítica tem spoilers, então, se você não houver visto Tempo, sugiro que retorne a leitura apenas quando o fizer.
Tempo é apenas a segunda vez, depois de O Último Mestre do Ar, em que M. Night Shyamalan dirige um roteiro adaptado, este da graphic novel Sandcastle de Frederik Peeters e Pierre-Oscar Lévy, mas a impressão digital dele está tão presente que alguém desavisado poderia presumir que se tratasse de material original. Isto porque o roteiro de Tempo tem os elementos típicos da obra de Shyamalan e o plot twist é só mais um deles: a utilização de crianças como alternativas para combinar inocência em meio a uma dramática fábula, a existência de múltiplos personagens de onde deflagram interações mais simbólicas ou metafóricas do que literais, a delimitação concreta do tempo e espaço fílmicos.
Já a forma cinematográfica rende o trabalho mais autoral do diretor em algum tempo, mais na linha de A Vila e A Dama na Água, do que de A Visita ou Fragmentado. Ao lado do diretor de fotografia Mike Gioulakis, Shyamalan transforma Tempo em um episódio estendido da série clássica Além da Imaginação, a partir da introdução de um fenômeno físico-quântico que acelera o envelhecimento (ou o metabolismo) de turistas que se encontravam na praia vizinha de um resort de luxo. Não existe a preocupação em explicar o que provocou este dispositivo narrativo nem quem lucra em torno dele, por 90 minutos pelo menos, mas com a maneira como as relações humanas entre os personagens se estremecem quando pensamos no advento do tempo.
O conceito é cristalino, igual às águas do mar: o tempo cura todas as feridas, ou então as revela de um modo implacável. Enquanto tentam encontrar uma maneira de escapar da ilha, os personagens divagam a respeito dos dramas pessoais ou familiares que o tempo cuidou de amenizar – é o caso do casal à beira do divórcio, Guy (Bernal) e Prisca (Krieps, de A Trama Fantasma) -, e percebem como os valores defendidos estão sujeitos à deterioração – a beleza de Chrystal (Lee) e o intelecto de Charles (Sewell). Há espaço também para alguns (desajeitados) comentários sociais a respeito da divisão de classes ou da presunção de culpa em razão da cor da pele; contudo, a abordagem se mantém sólida em ilustrar o tempo como algo com que você não colide sem se ferir; melhor aceitá-lo, adaptar-se ou talvez contorná-lo.
A câmera na narrativa é uma representação literal das interações entre aquela dezena de pessoas na praia, a fim de evidenciar a união, a desunião e o desconforto provocado por enquadramentos parciais de rostos dos personagens, que nem de longe parece o ato de um diretor amador, mas um interessado em estimular a linguagem cinematográfica a partir dos elementos visuais. É algo presente nos créditos iniciais, em como as fontes são enquadradas pela metade enquanto envelhecem com a mudança da tipografia, e que é mais explorado com Charles, enxergado de forma ‘fraturada’ ou fragmentada. É uma ilustração do estado de espírito dele, confrontado com a exigência da mãe de ser a pessoa quem deverá guiá-los para além dali mas que não tem o estofo humano para fazê-lo.
Menos exitosa parece-me a movimentação permanente da câmera, deslocando-se do grupo central em direção a espaços vazios, para então retornar, como mecanismo de fuga dos atos que acontecem fora do campo de visão. Com esta decisão estilística, não é que Shyamalan procure mascarar a violência da situação – como acontece na montagem de impacto que associa a queda de uma personagem às ondas colidindo contra as rochas -, inclusive, ele é bastante gráfico ao ilustrar punitivamente as consequência da falta de cálcio no corpo de uma personagem. É que a movimentação livre contraditoriamente busca o tempo morto onde este não existe mais, ao menos dentro dos critérios expostos na trama.
Também há alguma ingenuidade em construir suspense na revelação, pelo ponto de vista dos pais, do envelhecimento precoce das crianças, que agem como adultos, embora não tenham a experiência nem o conhecimento ou desenvolvimento intelectual inerentes ao tempo. É uma fantasia cujas regras não foram negociadas com o espectador, mas impostas, ainda mais diante do desejo de estabelecer uma justificativa racional aos motivos que levaram aquelas pessoas àquela praia. É como se o diretor tentasse reviver o desfecho de A Vila com resultados negativos.
Em contrapartida, Shyamalan estabelece uma visão de metalinguagem em como se coloca, no topo da montanha literalmente, como um observador que assiste, em tempo recorde, ao esvaziar da vida em direção à morte. É o ofício da direção retratado misteriosamente, como o sujeito onisciente, apto a alterar os rumos de vida dos personagens pela não interferência, em prol da observação mediada pela câmera. Deste modo, Tempo é um dos experimentos em linguagem mais curiosos da carreira do diretor, um em que os excessos formais podem afastá-lo da unanimidade de O Sexto Sentido ou A Visita, mas que sem dúvida proporcionam o filme mais Shyamalan do diretor em uma década.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.