Ruth Wilson é o destaque em drama misterioso
A estilística adotada pela diretora Harry Wootliff às vezes sufoca a narrativa, tanto quanto o mundo contemporâneo oprime Kate. Em um emprego burocrático de que não gosta, pressionada pelos pais e pela melhor amiga a alcançar objetivos pré-determinados (família, filhos) e com enxaqueca, Kate é um fiapo de mulher em uma Londres indiferente a seus sonhos.
Até conhecer Blond, personagem que parece haver saído direto de sua imaginação para preencher a existência dela com a emoção que falta à vida quadrada: o sexo em locais público, a nudez ao ar livre, o consumo de drogas e a irresponsabilidade são somente alguns dos valores impregnado nela no período em que se conhecem.
Blond é um mecanismo de fuga mas é também um instrumento de opressão, já que apresenta uma postura agressiva desde quando a empurra, acidentalmente?, contra uma parede antes de transar ou na maneira como a ofende em razão do sapato que utiliza no serviço ou até mesmo pelo fato de ter um emprego igual ao que tem.
De certo modo, Blond parece não existir concretamente, e a diretora Harry Wootliff tenta plantar a dúvida na cabeça do espectador a partir de escolhas formais interessantes, ainda que excessivas. A começar pela razão de aspecto claustrofóbica, acentuada pela escolha desconfortável para o plano e contra plano, em que o interlocutor ocupa, fora de foco, uma parte significativa do quadro a ponto de sufocar ainda mais Kate.
O foco, a propósito, é um instrumento utilizado na narrativa para realçar a percepção distorcida que Kate tem da realidade e também para ilustrar o esforço da fotografia em tentar focalizar quem Kate é, na verdade. Além disto, a direção de fotografia destaca uma claridade ofuscante, como se fosse a consequência de encarar o sol e cegar ao que existe a redor, e cores vibrantes, cuja luminosidade penetra na lente da câmera criando clarões ainda mais efusivos.
Esses elementos são sugestivos, porém não conclusivos quanto a Blond. Desgosto de imaginar que Kate fabricaria, na figura desse homem, uma espécie de auto abuso, embora não descarte esta interpretação que pode ser melhor trabalhada pelo texto de uma crítica. Noutra análise, a carência de Kate é sobremaneira que seu sonho se locupleta em Blond.
Independente do que pense, Ruth Wilson tem um desempenho admirável em como desenvolve a dúvida plantada por uma personagem, até então ordinária, na introspecção e no desejo de se libertar daquilo que a prende.
Coisas Verdadeiras está disponível na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.