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Todos os Mortos

Todos os Mortos

120 minutos

Certo dia, de férias em Ouro Preto/MG, visitei o Museu Casa dos Contos onde, no porão, existia uma senzala. Não sei afirmar se não era somente fragmento da minha imaginação, mas a energia que tal ambiente emanava estava carregada de dor e sofrimento. Até parecia que havia me transportado há anos antes de 1888 e poderia assistir à violência praticada uns contra os outros por causa da cor da pele. Resgatei este momento enquanto conferia o drama histórico dirigido e escrito por Caetano Gotardo e Marco Dutra, “Todos os Mortos”: era como se enxergasse, através dos olhos de Ana, os espíritos daqueles tantos mortos ou violentados sem serem libertos dos grilhões da escravidão, e ali permaneciam, indefinidamente, naquele museu dos horrores que os Soares chamam de casa.

Contudo, não é a respeito disto esta narrativa que disputou o prêmio principal do Festival de Berlim deste ano. Na realidade, a trama é um contraponto histórico entre a decadente sociedade cafeeira e a comunidade negra, que tenta organizar-se sem auxílio nem quitação da chamada dívida histórica em uma São Paulo cujo pano de fundo, apesar de estarmos no fim do século XIX, são os dias de hoje. Assim, o roteiro estrutura-se em torno dos conflitos entre a comunidade luso-brasileira elitista e católica e a negra alforriada, que enfim está livre para ingressar no mercado trabalhistas, ainda que informalmente, e praticar as tradições religiosas herdadas de seus pais ou avós.

A matriarca ironicamente batizada de Isabel sequer consegue adaptar-se ao conceito de horário de trabalho, como também tenta apropriar-se do filho único de Iná com a promessa de que adquirirá conhecimento e cultura dentro de seu lar. Enquanto isto, a freira Maria, não existe nome em vão na narrativa, entra em choque com Iná por desavenças que apenas começam no campo religioso antes de ramificarem-se e questionaram os valores do próprio hábito que veste. Quanto à caçula Ana, esta subsiste em um purgatório balizado por transtornos psíquicos aparentes, pelo aparente prazer em humilhar aqueles com tom de pele mais escura que o seu e pelo jardim, onde enterra o “passado”, como muitos hoje em dia fazem ao evitar responsabilizarem-se pela desigualdade social provocada desde ida a escravidão e jamais remediada, senão por ações afirmativas e inclusivas pontuais.

E uma das razões para políticas desta maneira que, parecem, criar situações desiguais quando estão apenas diminuindo desigualdades preexistentes está escancarado no roteiro, que acerta em ilustrar como o fim da escravidão não trouxe nenhuma ação adicional com o objetivo de integrar o negro à sociedade. Isto provocava o retorno deste às casas ou fazenda de onde saíram, continuando a servir a seus senhores, sem nenhuma legislação que protegesse o trabalho. Mesmo libertos, continuavam escravizados; senão pela força, agora pela necessidade, nesta lógica cruel perpetuada até os dias de hoje.

Por esta razão, por mais anacrônico que pareça assistirmos, p. ex., a prédios de alvenaria em estágio avançado de construção, esta narrativa de época acolhe o estranhamento inicial, pois o argumento defendido é justamente de que as mudanças ocorridas a conta-gotas ainda não surtiram efeitos em tornar a sociedade contemporânea menos desigual. Em contrapartida, se ilustra o passado nos dias de hoje, a narrativa peca em um jogo de cena enrijecido pela estética teatral que tenta evocar, como através de diálogos declamados sílaba a sílaba, em vez de sentidos quando ditos. Existe verdade no texto, mas não emoção nos personagens ao enunciarem-nas ao espectador.

Não ajuda a narrativa o ritmo excessivamente contemplativo ou mesmo a estrutura, subdividida em discriminações segmentadas, mas construídas sem uma articulação coesa: os eventos estão lá para que nós o testemunhemos, não para que sirvam de degrau para os subsequentes, levando Iná à casa dos Soares para realizar um ritual, às ruas onde tenta sobreviver de bicos e após de volta ao ponto inicial para buscar o filho, sem estabelecer a relação causal que liga este àquele ponto.

A conexão do espectador é também prejudicada pela abordagem distanciada dos diretores, em uma narrativa que se beneficiaria de contato mais estreito, sobretudo com Iná, a personagem central. É uma decisão que até inspira a reflexão em torno da importância de realizadores negros assumirem a posição de contadores das próprias histórias, como é a deste “Todos os Mortos”, embora não haja como negar a empatia e boas intenções demonstradas por Caetano Gotardo e Marco Dutra com a história de um país que definha sempre que enterra o passado, em vez de quitar, de vez, o signo mais representativo da desigualdade: a herança escravocrata.

Crítica publicada durante a cobertura do 48º Festival de Gramado.

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