Um exercício metalinguístico de contação de histórias permeado por uma boa dose de melancolia e saudosismo.
Por Thiago Beranger.
No Táxi do Jack já começa de uma forma bastante peculiar. A diretora portuguesa Susana Nobre aparece em cena, posicionando e ajustando o foco de uma câmera, quando de repente se vira para frente e começa a interpretar uma funcionária do serviço de emprego entrevistando Joaquim, um senhor em busca do recebimento do seguro desemprego. Esse início já demonstra que estamos diante de algo interessante. Um filme que fala sobre fazer filmes, sobre contar histórias.
E quem melhor do que um ex-taxista para falar sobre contação de histórias? Joaquim Veríssimo Calçada ou Jack (interpretado por ele mesmo) é uma daquelas figuras simpáticas que encontramos aí pelas ruas. Daqueles que não perdem a oportunidade de puxar um bom papo. O homem, já idoso, ostentando um topete a la Elvis Presley, parece já não ter muito uma perspectiva de futuro, por isso olha pro passado com saudosismo. Portugal é um país que garante dignidade para os seus cidadãos através de programas sociais bem estruturados, por isso, mesmo chegando ao fim da vida sem muitas posses, Jack não é alguém que precisa lutar para sobreviver. Ele apenas existe e encontra em suas histórias como motorista na América a emoção que falta no seu dia-a-dia.
É muito interessante a forma com a qual o filme constrói esses dois aspectos. De um lado a monotonia do cotidiano de Joaquim, que busca de porta em porta carimbos que comprovem sua busca por emprego para poder garantir o recebimento dos benefícios oferecidos pelo governo, vai ver um velho amigo com deficiência visual, visita o túmulo dos pais e desempenha outras tarefas nada interessantes. Nesses momentos o filme se torna até um pouco arrastado, como que pra representar a falta de propósito do protagonista.
Do outro lado, estão as histórias de Jack vivendo em Nova York, dirigindo pra celebridades como Muhammad Ali e pra diversos operadores da Bolsa de Valores, se dedicando ao aprendizado do inglês, cobrando violentamente um dinheiro emprestado a um colega de trabalho, como se fosse um gangster de um filme do Scorsese… A diretora se dedica a ilustrar alguns desses momentos, fazendo com que Jack interprete a si mesmo em cenas que desnudam a farsa cinematográfica. Que mostram equipamentos, cenários, equipes. Que promovem um exercício metalinguístico interessantíssimo.
Nesse sentido, o filme me recorda o trabalho de Abbas Kiarostami em Close-Up de 1990, quando realidade e encenação se confundem através da utilização do próprio personagem como ator de si mesmo, reconstituindo momentos de sua vida. Tanto no clássico iraniano quanto no longa português, o cinema aparece como um dispositivo de fuga de uma realidade acachapante. Lá o tipógrafo desempregado Hossain Sabzian enganou uma família abastada fingindo ser um famoso cineasta, talvez com o objetivo de dar algum propósito, mesmo que fingido, à sua vida. Aqui, Jack brinca de ser ele mesmo, de reinterpretar o seu próprio passado, e por que não, quem sabe, aumentar um pouquinho as histórias que viveu. Afinal de contas, um bom contador sempre dá um jeito de tornar as suas histórias mais interessantes. Os pescadores e taxistas da vida cotidiana sabem muito bem disso. Os bons cineastas também.
No Táxi do Jack está disponível na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.
Publicitário que escreve sobre cinema desde 2020. Colabora como crítico no site Cinema com Crítica.